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Subject: Ségolène e nós


Author:
Vicente Jorge Silva (DN, 22 Novembro 2006)
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Date Posted: 22/11/06 13:11:12

Ségolène e nós


Vicente Jorge Silva
Jornalista

O PS francês será representado nas presidenciais do próximo ano por Ségolène Royal, que ganhou as primárias do partido por mais de 60% dos votos dos militantes. O facto não constituiu verdadeiramente uma surpresa, considerando a popularidade da candidata nas sondagens e a longa distância que a separava dos outros dois concorrentes, Strauss-Kahn e Fabius. Os militantes socialistas confirmaram, assim, a tendência geral da opinião, apesar de alguns prognósticos que apontavam para a possibilidade de uma segunda volta, na qual o peso do aparelho e da ortodoxia partidárias poderiam acabar por favorecer uma candidatura mais tradicional. Ségolène venceu de forma absolutamente categórica e desfez as reservas que os "elefantes" do PS colocavam à sua legitimidade para enfrentar o provável candidato da direita, Nicolas Sarkozy. Resta agora saber qual dos dois sucederá a Jacques Chirac e se a França terá, pela primeira vez, uma mulher como Presidente da República.

Se o fenómeno Ségolène representa um pequeno terramoto numa paisagem política tão cristalizada como a francesa, as suas ondas de choque poderão repercutir-se por toda a Europa, como alguns comentadores internacionais têm feito notar. Não porque seja rigorosamente uma novidade uma mulher ocupar a liderança de um grande país europeu (a política britânica foi literalmente redesenhada por Margaret Thatcher e, na Alemanha, Angela Merkel tem mostrado, apesar das dúvidas iniciais e da sua actual crise de popularidade, uma firmeza e uma consistência que impõem respeito). O que é novo, em Ségolène, é a perturbação que ela introduz no seio da sua família política de origem - não foi esse propriamente o caso de Thatcher ou Merkel - e a frescura quase subversiva com que interpela as convenções de um mundo político moribundo, cada vez mais divorciado da realidade social e da participação dos cidadãos. Ora, esse problema não é apenas caracteristicamente francês - é também europeu. E, já agora, português.

No Público de domingo passado, Jorge Almeida Fernandes cita um artigo do filósofo espanhol Daniel Innerarity no Le Monde: "Face ao discurso dominante para quem a morte das ideologias erige o interesse em protagonista único da vida política, é preciso afirmar precisamente o contrário: o desaparecimento dos sistemas ideológicos fechados abre um espaço para as ideias, ou seja, para a política como actividade inteligente". Algumas ideias de Ségolène (os "júris de cidadãos" para avaliar a actividade dos políticos, ou a colocação de jovens delinquentes sob tutela militar, por exemplo) são certamente muito discutíveis. Outras aparecem contra a corrente da ortodoxia da esquerda tradicional (como o elogio da política de emprego juvenil de Tony Blair). Outras ainda reflectem a preocupação dos cidadãos mais vulneráveis com a insegurança urbana, um tema dito de direita. Mas, precisamente por serem controversas e incómodas, essas ideias rompem com os estereótipos ideológicos - são uma janela aberta para um debate político sem preconceitos e verdades feitas (ou, como diz Innerarity, para a "política como actividade inteligente").

Quer-se melhor exemplo do contrário disso do que o panorama actual da política portuguesa? Pois vejam-se as reacções de pura esquizofrenia e desnorteamento patético que suscitou a recente entrevista do Presidente da República nas hostes do maior partido de oposição. De Luís Filipe Menezes a Paula Teixeira da Cruz - passando pelos indefectíveis jardinistas Guilherme Silva ou Coito Pita -, não faltou quem enaltecesse vivamente a postura de Estado de Cavaco Silva, após o Presidente se ter declarado em expressa sintonia com o "espírito reformista" do Governo de José Sócrates. Ora, se Cavaco apoia o que o PSD designa por "inconstitucionais" ou "fictícias" reformas do Governo socialista, como se compreende - como compreenderão os eleitores - o temor reverencial do partido "laranja" em manifestar uma democrática discordância com a posição do Presidente? Não será esta uma prova cabal da absoluta menoridade e inconsequência política do maior partido da oposição? Em que conta tem o PSD a inteligência dos cidadãos?

Em Portugal, a actividade política reduz-se a dois mundos separados por um muro. De um lado, o inacessível reino do segredo e do silêncio partilhados ciosamente entre o Presidente e o primeiro-ministro. Do outro, o circo do espalhafato partidário, em que o papel da oposição (das oposições) se esgota no estafado maniqueísmo retórico contra todas e quaisquer posições do Governo, mesmo aquelas que eventualmente mereceriam ser apoiadas. Já não se teme sequer a desvergonha, como quando o Bloco de Esquerda e o PCP se rendem à gritaria de Alberto João Jardim. Espaço para as ideias? A política como "actividade inteligente"? Valha- -nos Ségolène!

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