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Subject: Acerca do fascismo português


Author:
JMC
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Date Posted: 31/03/07 10:16:48

A polémica é recorrente, ressurgindo ao mí­nimo pretexto. Desta vez, o pretexto foi o museu que querem dedicar ao Salazar e a estúpida embirração dos comunistas com a iniciativa. Passado este tempo, os comunistas ainda não aceitam que um regime que teve tantos seguidores possa ter ainda alguns saudosistas convictos e desperte a curiosidade de uns quantos palermas; a sua concepção de liberdade não chega a tanto, à liberdade do outro. Detentores de uma ideologia totalitária, os comunistas apenas concebem a liberdade como obrigação de segui-la, não toleram o pensamento plural, tampouco o adverso. Estas suas reacções não denotam qualquer receio fundado de que o tal museu possa vir a constituir um embrião para o ressurgimento de um qualquer neo-salazarismo, porque o genuí­no jaz morto e enterrado e não deixou seguidores suficientes. Também para eles, é apenas pretexto para relembrarem e desfiarem o seu longo martirológio.

O mais "interessante" de tudo isto não é a reacção dos comunistas ao saudosismo salazarista. O mais "interessante" é o revisionismo histórico que se aproveita dos mesmos pretextos dos comunistas, por sua vez, para negar a existência do fascismo salazarista. Para os revisionistas, anticomunistas assumidos, o fascismo não terá existido por cá. Parece encararem Ditadura Militar, Estado Novo e Estado Social como meras alterações formais de um mesmo tipo de regime nacionalista, autoritário e reaccionário, sem algo qualitativamente novo que os distinguisse. Paradoxalmente, acerca deste assunto, existe uma certa simetria de apreciação entre eles e os comunistas, para os quais aqueles diferentes regimes se enquadram na mesma designação de "fascismo português", cuja existência se teria prolongado por quarenta e oito anos (1926-1974).

A distância no tempo e a democracia em que vivemos exigiriam, no entender dos revisionistas, outra qualificação para o regime salazarista, porque os estudos históricos e sociológicos não permitiriam enquadrá-lo no grupo dos regimes fascistas. A qualificação do salazarismo como variante do fascismo seria abusiva, uma pura falta de rigor designativo, usado à época pelos comunistas como mero instrumento ideológico para arregimentação de apaniguados e de aliados na sua luta contra a democracia representativa e o capitalismo. Apesar de não ser nova, a preocupação não deixa de ser assaz estranha, porque toda a gente minimamente informada nunca pretendeu qualificar o fascismo salazarista como modelo do fascismo mussoliniano, mas como sua variante particular, adaptada às necessidades da burguesia portuguesa para a sua unificação e confronto com os operários e os trabalhadores portugueses, segundo a perspectiva de um ideólogo informado e polí­tico hábil, que veio a comprovar ser para a burguesia mais reaccionária o polí­tico certo na hora certa, e por isso foi adoptado como Chefe.

Para os revisionistas, o fascismo salazarista não teria existido. Porque não se enquadra nos estereótipos, no tipo-ideal weberiano, onde só cabem o tipo precursor e, quanto muito, os derivados caricaturalmente corrigidos (os tais "mais papistas do que o papa"), não os derivados adaptados e eventualmente atenuados; porque não vem nos livros de análise histórica ou sociológica, para mais porque havia uns movimentos nacionalistas de jovens arruaceiros violentos, esses, sim, correspondendo ao tipo-ideal, que foram proibidos (ainda que a maioria dos seus quadros tenha sido integrada); porque é menorizar o Chefe Salazar, o ideólogo de pensamento estruturado, o táctico sagaz e o polí­tico frio e calculista, que soube realizar a integração das direitas, querendo compará-lo com os Chefes demagogos, loucos e violentos do tipo-ideal; porque é confundir a matriz maurasiana do salazarismo, intrinsecamente reaccionária à modernidade, com a amálgama pseudo-modernizadora-socialista de reacção ao bolchevismo do tipo-ideal; porque é equiparar um regime de elites, de quadros técnicos, de caciques locais e dos pobres deles dependentes - erigido num paí­s rural, de incipiente industrialização e com um movimento operário pouco concentrado e pouco susceptí­vel ao bolchevismo - a movimentos e regimes de direcção pequeno-burguesa e de grande base operária desempregada, nascidos no pós-guerra em paí­ses industrializados do tipo-ideal, nos quais o bolchevismo era uma forte realidade; porque, no fundo, é retórica da "lí­ngua de pau" dos comunistas, que nada tem a ver com a realidade do nacionalismo autoritário salazarista.

Ao contrário de muitos outros, o Salazar foi um ditador "civilizado". Nunca envergou qualquer das fardolas das duas organizações para-militares criadas pelo regime, mantendo a vestimenta civil, vaidade a que não escaparam outros seus dignitários; foi muito mais comedido nas opções de vida, fazendo do exercí­cio do poder um dever de servir a pátria e não de se servir dela, rejeitando o fausto e cultivando a poupança (são célebres as solas rotas das botas, a governanta que criava galinhas no quintal e vendia ovos nas redondezas e a meticulosa prestação de contas às irmãs sobre a administração das terras da famí­lia); foi muito mais sóbrio na repressão, ficando-se em muitos casos por "uns safanões a tempo", e no número dos opositores que mandou encarcerar e desterrar ou no dos assassinatos que mandou perpetrar; desprezava as massas, tinha horror a banhos de multidão e só a contra gosto, de púlpito alto, se prestava ao folclore da saudação romana e das vibrantes manifestações de homenagem que as organizações do regime lhe promoviam; não apreciava os partidos polí­ticos e as suas disputas de galos, tinha obsessão pelo poder não partilhado, e instituiu o fascismo português como regime de compromisso ideológico e polí­tico, servindo-se do poder pessoal e do Estado, de que já gozava, e não através do poder conquistado por um partido fascista, numa simbiose curiosa entre o Estado e o Partido único.

Mas o Estado Novo salazarista foi organizado por inspiração no corporativismo defendido pelo Vaticano e erigido pelo Estado Fascista italiano (basta cotejar a Constituição de 1933, o Estatuto do Trabalho Nacional, a Organização Corporativa que foi sendo institucionalizada ao longo dos anos, dos Sindicatos Nacionais aos Grémios, Federações, Corporações, Casas do Povo, Câmara Corporativa, Caixas de Previdência, FNAT, etc.), de que um dos grandes obreiros foi o Teotónio Pereira; o Estado Novo criou, por decreto governamental, o partido único União Nacional, assim como instituições para-militares para funcionarem como baluartes de propaganda e de defesa do regime contra eventuais acções revolucionárias de massas (a Legião Portuguesa, que actuava como movimento organizado de defesa do território e como instrumento de intimidação e de perseguição de opositores, e a Mocidade Portuguesa, para enquadramento e doutrinação da juventude, institucionalizada nas escolas), banindo todas as organizações não submetidas à hierarquia instituí­da, mesmo algumas que se baseavam em ideário fascistóide similar (os camisas azuis do movimento nacional-sindicalista do Rolão Preto, de que integrou a maior parte das hostes); o Estado Novo foi um Estado de direito muito peculiar, assumidamente anti-democrático (definindo-se como uma suposta "democracia orgânica", como contraponto à democracia liberal, que repudiava), altamente centralizado e governamentalizado, no qual a Assembleia Nacional não constituí­a um verdadeiro parlamento nem fiscalizava o Governo, em que a constituição foi plebiscitada com as abstenções contando como votos favoráveis, com a lei ordinária suspendendo direitos e garantias constitucionais, banindo qualquer oposição organizada e mantendo os actos eleitorais como rituais de consagração e simulacros de legitimação popular (com voto censitário, com recenseamento seleccionado, sem liberdade de propaganda dos opositores, com resultados fraudulentos quando necessário, etc.); o Estado Novo foi também um Estado policial peculiar, com uma Polí­cia Polí­tica e uma vasta rede de informadores enquadrados e de "bufos" anónimos, no qual a tortura era prática corrente e o arbí­trio policial em muitos casos substituí­a as leis e as sentenças judiciais, e com Tribunais Militares e Tribunais Penais Especiais que só nominalmente eram depositários de qualquer independência do governo; o Estado Novo difundia um pensamento único, com departamento especializado para a propaganda (basta recordar o célebre Secretariado de Propaganda Nacional, dirigido pelo António Ferro), baseado no culto do Chefe (o Salazar), na glorificação dos feitos históricos da "raça portuguesa", na exaltação dos méritos do regime, na defesa do nacionalismo, da autoridade e da ordem, na imposição da obediência e da aceitação dos valores tradicionais, no reconhecimento quase exclusivo da religião católica na sua versão mais conservadora, na criação duma iconografia em correspondência, na censura prévia da informação e da cultura; o Estado Novo vigiava, ameaçava, despedia, perseguia e reprimia violenta e insidiosamente opositores ou meros não simpatizantes, encarcerava os inimigos por longos anos em duras condições penais ou em campos de concentração, fora os que assassinava, e degredava, desterrava ou obrigava ao exí­lio os adversários.

O Estado Novo, porém, nalgumas caracterí­sticas não pode ser comparado com outros regimes fascistas; mas o povo português também não pode ser comparado com outros povos e a oposição portuguesa também não se comparou com outras oposições. O fascismo português não foi racista (pudera, entre um povo que fora formado pela miscigenação entre celtas, romanos, judeus, mouros e muitos outros, e havia séculos convivia em plena capital com pretos e outros achocolatados); não foi expansionista (pudera, tendo o mar e um aliado como fronteiras, e já com império ultramarino que mal podia manter); não foi belicista nem alinhado com as potências do Eixo na guerra, negociando com ambas as partes (pudera, conquistadas as boas graças franquistas com a ajuda na guerra civil, face às conhecidas debilidades do regime só a neutralidade e a fidelidade formal à aliança inglesa poderia preservar o império ultramarino). O Estado Novo também não foi o estado da violência quotidiana e da repressão indiscriminada, como querem fazer crer os comunistas; foi um estado policial de repressão selectiva, que após a primeira década de existência tomou a pequena seita conspirativa de revolucionários profissionais comunistas como principal inimigo, porque era a única que afirmava disputar-lhe o poder e cujo ideário revolucionário poderia transformar-se num perigo real se contaminasse as massas operárias e trabalhadoras.

O Estado Novo, de facto, não foi tudo isso; foi um regime organizado com base numa ideologia bem definida - o corporativismo, oriunda do Vaticano e do fascismo italiano - matizada pelas convicções do Salazar no que respeitava aos valores do tradicionalismo patriarcal e ruralista; que se afirmava revolucionário, em continuidade com o espí­rito da Revolução Nacional iniciada com o golpe militar de 28 de Maio de 1926, tendo em vista a modernização do paí­s - espí­rito patente na própria designação de Estado Novo que adoptou - contra a desordem social e o descalabro económico da 1.ª República; que promoveu a aliança entre industriais e proprietários rurais, os cartelizou e organizou contra os trabalhadores, propagandeando uma suposta harmonização dos seus interesses de classe tão divergentes; que tinha uma visão dirigista da economia, subordinando-a às metas traçadas pelo Estado (basta lembrar os Planos de Fomento, o Plano de Electrificação Nacional, a Lei do Condicionamento Industrial, o tabelamento dos preços, a fixação dos salários e outras muitas formas de intervenção e de controlo da economia); que praticou o culto do Chefe salvador, que permanentemente glorificava; e que usou as doses de repressão necessárias para conter as oposições que foi conhecendo, com destaque para a pequena seita conspirativa de revolucionários comunistas.

O Estado Novo, portanto, não pode ser qualificado apenas de Estado Nacionalista Autoritário, baseado no carisma de um déspota esclarecido, que a si próprio se considerava um iluminado predestinado para servir a pátria e cuja complexa personalidade, na qual uma falsa modéstia camuflava um exacerbado cinismo, ainda hoje constitui um mistério. Pela ideologia bem definida, pela estrutura organizativa bem caracterizada, pelo culto do Chefe, pelo controlo da informação e da cultura e pelas práticas repressivas não pode escapar à qualificação de Estado Totalitário Fascista, mesmo não sendo o arquétipo dos regimes fascistas. Para assim o qualificar bastam as semelhanças do ideário, da organização e das práticas; pôr em evidência as diferenças não ilude o essencial, apenas serve o branqueamento e o revisionismo histórico. São essas semelhanças, ainda que esbatidas por força das mudanças geo-estratégicas do pós-segunda guerra mundial, que fazem com que o Estado Novo não possa ser equiparado ao regime da Ditadura Militar, que o antecedeu, nem ao regime do Estado Social, que lhe sucedeu, ao contrário do que afirmam os comunistas. Deixando de lado o regime da Ditadura Militar (1926-1933), por tão óbvio, a verdadeira polémica com os comunistas deveria centrar-se no qualificativo de fascista que eles atribuem ao regime do Estado Social, instituí­do pelo Caetano, como se nada de importante o tivesse diferenciado do Estado Novo salazarista.

Parece por demais evidente que os revisionistas pretendem usar o pretenso rigor histórico e sociológico, de que se mostram tão zelosos, como mero instrumento ideológico de combate aos comunistas. É totalmente desnecessário, porque os comunistas não se arrogam terem sido os únicos antifascistas. Do que eles se arrogam é terem sido os lutadores mais consequentes e, por isso, os heróis da luta antifascista. Não foram uma coisa nem outra, porque os comunistas, por vários e longos perí­odos, não foram verdadeiros lutadores pela liberdade e pela democracia, os objectivos da luta antifascista, mas revolucionários anticapitalistas e antidemocráticos, imbuí­dos de espí­rito sectário, que procuravam instrumentalizar as diversas oposições e frequentemente inviabilizavam a unidade antifascista. Os comunistas tampouco foram verdadeiros lutadores pelos interesses imediatos dos operários e dos trabalhadores, porque estes apenas os interessavam como massas de insurrectos revolucionários. O único pecúlio dos comunistas é terem sido mártires da sonhada revolução comunista, por na qualidade de membros de uma pequena seita conspirativa revolucionária, ao serviço duma potência estrangeira, terem sido tomados como alvo preferencial da repressão do fascismo salazarista. Esse pecúlio nenhum revisionismo lhes conseguirá retirar, mas era ele que o zelo revisionista poderia desmistificar, traçando com rigor os seus verdadeiros contornos e significado. Se os comunistas são mártires, em grande medida são mártires de uma outra causa, que não apenas a da luta antifascista. Parece, contudo, não ser isso que o revisionismo persegue. Por enquanto, com o seu pretenso rigor, os revisionistas pretendem chegar apenas à designação atribuí­da ao regime salazarista. Veremos se o interesse revanchista não os fará, mais tarde, descambar para o próprio conteúdo do regime, que não terá passado de uma ditadura pessoal, apenas prolongada. Veremos...

Felizmente, os comunistas não tiveram êxito na sua luta contra o fascismo salazarista do Estado Novo na sua longa existência; infelizmente, a oposição democrática também não. Isso mostra três evidências: por um lado, a capacidade ideológica e polí­tica do fascismo salazarista para erigir e manter um regime por trinta e cinco anos, adaptando-se às transformações geopolí­ticas ocorridas após a segunda guerra mundial; por outro, a fragilidade das oposições para organizarem a luta sistemática pela liberdade e pela democracia; e, não menos grave, o fraco apreço deste povo pela liberdade.


Texto revisto de dois comentários inseridos no kontratempos e referenciados ou reproduzidos no agualisa6.

publicado por JMC às 23:30

http://www.aparenciasdoreal.blogspot.com/

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