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Subject: «Os comunistas não serão substituídos por ninguém»


Author:
Joaquim Gomes
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Date Posted: 16/03/07 17:25:20


Joaquim Gomes, aos 90 anos,
fala do presente e do futuro
«Os comunistas não serão
substituídos por ninguém»

Joaquim Gomes tem 90 anos, completados no passado dia 9, e mais de setenta de militância comunista: primeiro na Juventude Comunista e, mais tarde, após sair da prisão, na organização do Partido. Até ao 25 de Abril, e para lá dele, assumiu várias tarefas partidárias, algumas das quais de elevada responsabilidade, tendo sido membro do Secretariado e da Comissão Política. Todos os dias, está na sede nacional do Partido, onde mantém tarefas. Em conversa com o Avante!, falou da infância difícil, das prisões e da confiança inabalável nas medidas traçadas no XVII Congresso para o futuro do Partido.

Fotos: Inês Santos

Avante! – Começaste a trabalhar cedo. Que recordações guardas desses tempos?

Joaquim Gomes – Comecei a trabalhar aos seis anos numa fábrica de vidro. Nessa primeira fábrica trabalhei poucos meses, até fazer sete anos, à espera de poder ir trabalhar para uma outra fábrica, onde só aceitavam os miúdos a partir dos sete. Tínhamos que levar a cédula de nascimento para sermos aceites.

Mas tinhas acabado de entrar numa fábrica… Para quê mudar?

Os meus velhotes, especialmente a minha mãe, queriam que eu fosse para a outra fábrica porque já lá trabalhavam um irmão e uma irmã meus. Isto que permitia juntar o farnel, que era normalmente constituído por pão de milho com uma sardinha, ou com aquilo que houvesse. Portanto, a ida para essa outra fábrica teve também um objectivo económico.

Entretanto juntas-te às Juventudes Comunistas. Quando foi isto e como aconteceu?

Entrei nas Juventudes Comunistas entre o final de 1931 e o início de 1932. Não consigo precisar bem a data, mas sei que tinha 14 anos. Quando aderi às Juventudes Comunistas estava na indústria da cristalaria mas já tinha passado pela indústria de garrafaria.
Na indústria da cristalaria, fazia-se apenas um turno por dia, mas na indústria da garrafaria faziam-se três turnos: das oito às quatro da tarde, das quatro à meia-noite e da meia-noite às oito da manhã. E havia ainda a indústria da vidraça, mas aqui não havia aprendizes, pois era um trabalho extremamente pesado, reservado a adultos. Fui para a garrafaria com doze anos.

Foste trabalhar por turnos tão novo? Eras pouco mais do que uma criança…

Na garrafaria ganhava-se ligeiramente mais. O salário era pequeno, mas naquela altura tudo contava. Foi nessa fase que eu, e outros jovens, entrámos na luta porque o trabalho era extremamente violento. E não era só violento, trabalhavam lá crianças. Os aprendizes tinham à mesma sete ou oito anos. E, em alguns casos, menos. Digo-te mais: o grande dirigente do Partido José Gregório tinha cinco anos e era levado ao colo para o trabalho, pois morava perto da fábrica.
Trabalhar das quatro da tarde à meia-noite passa-se já parte da noite a trabalhar. Mas pior ainda era trabalhar no turno da meia-noite às oito da manhã. As crianças caíam com sono e os adultos não estavam com meias medidas: o mais suave era atirar um balde de água fria para cima. Mas muitas vezes queimavam-nos com o vidro para que eles acordassem.

Calculo que isto provocasse uma grande revolta entre os operários mais jovens…

O movimento dos aprendizes da indústria do vidro era forte. Quando havia greve numa fábrica, e havia muitas, bastava avisar os aprendizes das outras fábricas, que paravam a produção por completo. Se um aprendiz era agredido, o que era frequente, e os outros aprendizes presenciassem a agressão paravam logo com o trabalho. Atingiu este grau de solidariedade e espírito de luta entre os aprendizes da indústria do vidro de cristalaria. Nem os adultos faziam greves como nós.

Com tantas greves, acabaste na prisão… Como foi o primeiro embate com a repressão?

Em Novembro de 1933 fui preso, com mais sete jovens, um de cada fábrica, por termos feito uma greve de aprendizes. Queriam saber duas coisas: quais de nós pertenciam às Juventudes Comunistas e quem nos controlava. O primeiro embate com a repressão não foi assim muito agradável: estávamos numa sala e levei uma chapada que voei pelo ar de um lado ao outro. Levei muita porrada, eu e os outros jovens. Mas isso não me levou a pensar que assim era difícil e que era melhor começar a pensar na vida. Pelo contrário, saí da prisão com mais vontade de continuar.

A trabalhar desde tão novo, e por turnos, não tiveste oportunidade de estudar. No entanto, és uma pessoa culta e instruída. Como fizeste a tua aprendizagem?

Fui aprendendo aos bocados em casa. Havia uma professora que morava na Marinha Grande e ia a casa da minha mãe (morávamos numa aldeia próxima) aquecer o almoço. No tempo em que eu lá estava, ia-me dando umas liçõezinhas. Depois, quando comecei a trabalhar por turnos passou a ser mais difícil. Só voltei à «escola» no Sindicato dos Vidreiros, até ser fechado pelo fascismo. Mas quando fui preso já sabia ler. E lia tudo o que apanhasse. O meu pai até me criticava, por causa da vista. Lia durante a noite com uma lamparina que fazia uma luz trémula e dava cabo da vista.

Após o 18 de Janeiro
Reconstruir o Partido

O 18 de Janeiro apanhou-te preso e sais pouco depois. Cruzaste-te na prisão com outros presos do 18 de Janeiro. Que impressão te causaram?

Tomámos conhecimento do 18 de Janeiro de 1934 pelos camaradas presos que lá chegavam. Ainda hoje tenho imagens marcantes. Apesar de ser mais jovem, conhecia vários dos camaradas que, no seguimento do 18 de Janeiro, passaram pela cadeia onde eu estava. Eram levados para interrogatório e alguns deles quando regressavam nós não os reconhecíamos. Só pela roupa que tinham vestida. As barbaridades, as torturas, as violências eram de tal ordem que ficavam irreconhecíveis. Isto fez crescer ainda mais a revolta e o ódio pelo fascismo.

Entretanto és libertado e assumes logo tarefas no Partido…

Se a memória não me falha, fui libertado a 17 de Março de 1934. Duas ou três semanas depois, estava no Comité Local da Marinha Grande, porque a organização tinha sido completamente destroçada depois do 18 de Janeiro. As prisões foram muitas, alguns amedrontaram-se…
Foi assim que, aos 17 anos, entrei para o Partido. Foram-me buscar para, em conjunto com outros camaradas, alguns igualmente jovens, refazer a organização do Partido nas empresas vidreiras e não só. No final do ano, o fundamental das células estava a funcionar plenamente. Outro aspecto que me marcou bastante foi a solidariedade com as famílias dos presos do 18 de Janeiro…

Queres recordar essa solidariedade?

A partir do Comité Local da Marinha Grande, desenvolveu-se um movimento de solidariedade com os presos políticos, e eram muitos. E esta solidariedade não foi nada pequena. Em primeiro lugar, tratou-se de garantir o salário às famílias que ficaram sem salário. Tínhamos uma comissão que ia todas as semanas, no dia do pagamento, para a entrada das fábricas receber as contribuições. E toda a gente contribuía. Até mesmo gente reaccionária, salazarista, contribuiu. Além disto, organizámos bailes e festas para angariar dinheiro. Devo dizer que não conheço parte nenhuma do País em que se tenha desenvolvido um trabalho de ligação ao povo tão forte em torno do apoio às famílias dos presos.

Prisões e clandestinidade

Em 1937, Joaquim Gomes muda-se para Lisboa para trabalhar numa fábrica de lâmpadas eléctricas existente em Alcântara. Imediatamente é ligado ao Partido nessa zona operária da capital, pela qual ainda hoje mantém um carinho especial. Mas em 1939 a fábrica encerra e ele regressa à terra natal, ainda que por pouco tempo.
O desemprego durou pouco. Ainda em 1939, volta a Lisboa para trabalhar em Pedrouços, numa fábrica de garrafas-termo. No dia do seu casamento, em 1940, recorda, «tivemos que regressar a Lisboa porque, no dia seguinte, o camarada José Gregório ia lá a casa, que funcionava na altura como ponto de apoio».
Nessa altura, lembra Joaquim Gomes, «pelas próprias tarefas, tínhamos que fazer uma vida muito pacata, desligados de qualquer actividade política activa, para proteger os camaradas do Secretariado que precisassem daquela casa». Assim ficaram durante 12 anos, nos quais trabalhou na produção de termos. «Nem se ganhava mal para a época», realça.
Em 1952, Joaquim Gomes passa à clandestinidade, com tarefas no Comité Local de Lisboa. Dois anos depois, é preso, por denúncia. Para Joaquim Gomes, esta foi a sua «grande experiência de embate com a repressão». «Quando fui preso, a ideia era não dizer nada a ninguém, o que se cumpriu», recorda. Na primeira ou na segunda noite em que esteve na sede da PIDE, ficou de pé há bastante tempo e disse aos «pides»: «exijo uma cadeira para me sentar». Um deles riu-se, lembra Joaquim Gomes, que logo prosseguiu: «se não me dão a cadeira, sento-me no chão».
Ao sentar-se no chão, os esbirros lançaram-se sobre ele, violentamente. «Fiquei com nódoas negras em toda a parte do corpo.» Mas não cedeu. A cadeira acabou por vir. «Saí com este sentimento: fui eu que ganhei.»
O Aljube também deixou marcas. «Puseram-me no “segredo” sem roupa, sem enxerga, sem nada. E tive a pouca sorte de ter nevado em Lisboa nessa altura, a cela estava cheia de gelo. Fiquei com algumas marcas reumáticas que conservo ainda hoje.» Depois foi enviado para a prisão da PIDE do Porto, de onde fugiu com Pedro Soares.
Em 1958, é novamente preso. Era já membro do Comité Central. Enviado para Peniche, foge em Janeiro de 1960, na célebre fuga de Peniche. Até ao 25 de Abril, já membro do Secretariado, «fiquei sempre no País e passei a fronteira clandestinamente várias vezes, desde o Minho até ao Alentejo».

A fuga de Peniche
abriu caminho ao 25 de Abril

Agora a pergunta inevitável: onde estavas no 25 de Abril?

Estávamos numa reunião do Secretariado, no Porto, em casa do José Vitoriano. Tínhamos informações de que havia a hipótese de um movimento militar a 23 de Abril. Chegámos a dia 23 e nada. Lá se foi a Revolução, pensámos… Continuámos a reunião e, na manhã de 25 de Abril, a padeira que vendia o pão à camarada Diamantina, companheira do José Vitoriano, disse que «havia qualquer coisa a acontecer em Lisboa». Procurámos saber o que se passava e ouvimos a rádio… No dia 27 de manhã, voltei para Lisboa. Não podíamos sair logo da clandestinidade. Não sabíamos o que aquilo podia dar, com «spínolas» e gente dessa… Ainda vivi nessa casa, semiclandestino, uns bons meses depois da Revolução.

Na tua opinião, onde começou o 25 de Abril?

O 25 de Abril começou, de certo modo, com a fuga de Peniche, e não é por eu ter lá estado. Na altura da fuga, havia no Partido um desvio de direita e a ideia de que se podia chegar ao socialismo por via pacífica. Sem a fuga de Peniche e sem o camarada Álvaro Cunhal libertado e a orientar o Partido não sei se o 25 de Abril teria sido o que foi. Mas sem o combate que se travou no Partido contra o desvio de direita, tenho dúvidas que a liberdade tivesse vindo na altura em que veio e, sobretudo, com as características que assumiu.

Como vês a actual fase que o Partido atravessa?

O que se está a fazer desde o XVII Congresso do PCP é extraordinariamente positivo. Mas temos que trabalhar, e bem, para que o caminho que temos que percorrer, e será duro, não fique apenas à responsabilidade do secretário-geral do Partido ou de um número reduzido de camaradas deste ou daquele organismo. Temos possibilidades, e grandes, de cumprir o nosso papel. Agora, é necessário refazer o Partido e fazê-lo andar para a frente. É preciso que os militantes do Partido ganhem a consciência de si próprios. No caminho que temos que percorrer, ninguém nos substitui. Os comunistas não serão substituídos por ninguém.

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