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Subject: Gravidez & Aborto


Author:
César Príncipe
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Date Posted: 30/01/07 14:50:08

Gravidez & Aborto
Histórias da Santa Madre
Recordar a mulher em 11 de Fevereiro
por César Príncipe [*]

Quadros de Paula Rego, série sobre o aborto, 1998. No dia 8 de Março, Dia Internacional da Mulher, também se assinala o dia nacional da mulher. Dia interdito a comemorações quando por aqui vigorava, na máxima força, o macho latino e lusitano, nas ciências zoológicas classificável equídeo salazarense. A mulher beneficiou tanto ou mais com o 25 de Abril do que a classe operária e os assalariados rurais, do que qualquer dos protagonistas das revoluções igualitárias. A repressão sobre as mulheres, exercendo-se a nível político, acentuava-se também a nível da família, das convenções, do ensino, da religião, do emprego. O analfabetismo grassava e fazia parte de uma estratégia calculada, concertada ou espontânea mas que concorria para os mesmos objectivos e resultados: refrear a mulher, fonte do pecado original e animal doméstico por excelência. E o analfabetismo de múltiplos aproveitamentos assumia uma proporção mais massiva entre as mulheres. Eram, de um modo mais cerrado, desincentivadas de estudar, o que agravava o seu concurso e o seu desempenho no espectro das limitações e das oportunidades colectivas.

Mas o racismo uterino alastrava a múltiplos campos, desde logo, o da cidadania. Mesmo no quadro de um recenseamento expurgado e de fraude eleitoral, votar era privilégio de um gineceu cívico: o das proprietárias e licenciadas, então um pequeno estrato de portuguesas. Acrescia que as mulheres quase não ocupavam funções públicas, muito menos na esfera de representação do Estado. Por outro lado, não lhes concediam passaporte e só viajavam com autorização do consorte. Também eram vedadas ao género feminino certas ocupações ou restringidas a casos singulares nos mais diversos âmbitos: governo, autarquias locais, magistraturas, forças segurança, doutoramentos. Mulher de fábrica e de escritório tornaram-se modelos de promiscuidade e condição de estigma. As telefonistas e as enfermeiras foram tolhidas nas opções de casamento. Eram consideradas mulheres de risco. As professoras primárias eram empurradas para o nó com serventuários da máquina do Estado ou varões de fazenda.

Houve mesmo censuras sociais hoje da esfera do inconcebível: entrar num café denunciava um passo para a perdição. Sair à noite indiciava dormir com todos os conhecidos e desconhecidos. Pintar-se constituía sinal de conduta equivoca, próprio de mulheres de teatro. Usar calças ou fumar representava uma atitude subversiva. Expor mais uns centímetros de pele na praia poderia tirar a compostura ao País da Imaculada. Que imaculadas haveriam de apresentar-se ou aparentar-se as noivas, para o efeito amarradas até ao fim dos seus dias e arreadas com vestidos alvos e flores de laranjeira, já que Estado & Igreja haviam concordatado a interdição de divórcio. Depois, dentro do espírito dos altos valores da Nação, a membrana da Pureza tornou-se, na Política de Espírito do Estado Novo, uma instituição tão estimável e venerável como a Igreja, as Forças Armadas e o Dote.

A União Conjugal e a União Nacional completavam-se e emblematizavam-se na Trilogia Fascista: Deus, Pátria e Família. Em caso de adultério ou da mínima tentação da carne, do peixe ou da fruta, o marido passava por viril e a esposa por vil. Discriminação com fundas raízes. Até no seio da Nobreza as mulheres foram as últimas na linha dos títulos e as primeiras a ser deserdadas ou clausuradas em conventos e hospícios.

Mesmo na esfera eclesial, a mulher, laica ou membro de ordens monásticas, continua a desempenhar um papel secundário ou servil. Até nas insígnias mais elementares é patente a segregação e o ferrete: a freira usa aliança de comprometida, de noiva do Senhor, enquanto o padre ou o frade não usam anel de esponsal místico, sentindo-se solteirões livres, garanhões de Deus, dispensados de contrato virginal. Quanto à evolução geral dos costumes, foi fazendo caminho e evidenciando conquistas reais e formais mas os tutores e opressores não debandaram de vez. Buscam e buscarão sempre recuperar posições de domínio e predomínio.

A humilhação (pessoal, familiar, social, religiosa e jurídica) é uma das armas do machismo corrente e institucional. E muitas mulheres colaboram na sua degradação biológica, psicológica e afectiva sempre que se deixam enlear pelos argumentos do agente dominador e humilhador. Fenómeno de submissão e perversão que, à escala de outras culturas ou inculturas, por exemplo, as que praticam a excisão do clítoris (estimam-se em 150 milhões as mutiladas), se traduz no facto de serem mulheres a executar a norma incapacitante e seviciadora no interesse do egoísmo masculino e da ordem naturalizada.

Esperemos que, no próximo dia 8 de Março, o Dia Inter(nacional) da Mulher conte com mais um avanço civilizacional: A vitória do Sim no referendo de 11 de Fevereiro. Na realidade, pouco significado alcançarão as celebrações na boca de determinadas entidades e personalidades se a actual lei se mantiver, lei que protege o aborto clandestino e a fuga aos impostos, lei que mata dezenas de mulheres por ano, lei que ameaça as mulheres com prisão até três anos se não tiverem posses para uma escapadela a Espanha ou a uma clínica portuguesa segura e confidencial. Em Portugal, como é da sabedoria adquirida, à maneira dos estabelecimentos hoteleiros, também, no aborto, as opções marcam a condição económico-social das clientelas: há hospedarias de viela para as mulheres desafortunadas e hotéis de cinco estrelas para as senhoras de cartão dourado. Não querer ver também esta fronteira de estatuto só pode revelar uma imensa distracção ou uma rude hipocrisia.

Os distraídos ainda estão a tempo de se aperceberem do que está em jogo: deixar de criminalizar a IVG até às dez semanas e permitir o acesso a cuidados médicos especializados e legalizados às mulheres que optem por esse último recurso. Quanto aos hipócritas, não vale a pena perder tempo: é a profissão deles.

[*] Escritor, jornalista

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

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