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MIGUEL PORTAS (DN 30/6/2002)
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Date Posted: 07:24:58 06/06/02 Thu
CRONICA DE MIGUEL PORTAS NO DN DE 6 DE JUNHO 2002
Miguel Portas
Rapazes e raparigas
Grrr, hoje não me digam mais nada, disse ontem e imagina-se a
razão.
Preparei-me a rigor. Estou no Cairo e não quis deixar má impressão.
Fui para um dos 1001 cafés da cidade, daqueles com cadeiras de
madeira como já só existem no Porto, pedi um narguile perfumado e
um café turco. Ia ser uma grande manhã, fezada minha. Os egípcios
também, percebi logo a seguir. Para eles Portugal é uma simples
laranja, mas o Figo não há quem o não conheça. E assim uma
espécie de Eusébio no activo. Quem tem um Figo chama-lhe um figo
e isso até os meus companheiros de café percebiam. Bom, mais do
que por Portugal eles eram, isso sim, contra os EUA. Não se apanha
um árabe que goste de ianques. Talvez nos casinos do Cairo, que
são muitos, e onde não faltam os homens de negócios da Arábia
Saudita. É ai que eles se esquivam aos mandamentos de Alá, mas
agora isso não vem ao caso.
Regresso ao café. Aos três a zero assobiei para o ar, aquilo não
estava a acontecer, não era comigo. Aos três a um arranhei no meu
desgraçado inglês que a coisa ainda levava uma volta e lembrei-me
da Coreia. Já desesperava quando chega o três a dois e aí
convenci-me que Deus, sob o nome de Alá, afinal existia. Alá está
contra os américas e manifestamente procurava escrever direito
por linhas tortas. Adorei o ianque com rabo de cavalo. Mas depois
não deu. Que humilhação, meu Deus, e logo com os EUA!
É verdade que até nem nos fazia mal perder as peneiras. Aquela
mania da finta e da finta sobre a própria finta, fez daquele relvado
um latifúndio de sequeiro para os nossos e um pequeno regadio
para os norte-americanos. Se fosse com o Senegal, como
aconteceu aos franceses, até sorria. Agora com uns tipos que
ainda deviam estar a aprender a dar uns toques é que não pode
ser. Neste jogo, eles não têm mísseis, apenas pés e cabeça como
nós.
É nestes momentos que um anti-norte-americanismo-de-gema me
vem ao de cima. Demorarei uns dias a recompor-me até porque o
jazz não abunda por estas paragens. Leia-se assim esta crónica
como um efeito da falta de alimento com que a minha alma se debate
nesta hora difícil.
Encontrei recentemente mais uma razão para não gostar do
conservadorismo made in USA. Um tal Leonard Sax, director de
uma tal Associação para o Desenvolvimento da Educação
Separada nos EUA, disse outro dia que "a familiaridade gera
desprezo". A frase, sinistra, incide sobre as relações entre
rapazes e raparigas. Segundo a criatura, "os rapazes nessas
escolas (as separadas) convidam as raparigas para sair,
vestem-se com cuidado e levam-nas a bons restaurantes. Ainda
estão fascinados. Pelo contrário, os rapazes das escolas mistas
riem-se da ideia".
Interessante. Sou sensível a argumentos de etiqueta. Porque a
etiqueta é gentil. Mas, em bom rigor, ela e o lado educado de um
mundo deseducado. E a patine das sociedades patriarcais, o modo
que os homens dizem as mulheres que não são tão bárbaros como
parecem. Isto percebe-se melhor em périplo pelo mundo árabe. As
sociedades mais patriarcais são, invariavelmente, as de melhor
etiqueta. Por exemplo, na Líbia há lojas só para dotes. De noite tem
muitas luzes e servem as bolsas mais pequenas. Esses dotes
parecem os nossos cabazes de Natal, com um pouco de tudo à
mistura, devidamente embrulhados em papel celofane. É bonito e é
gentil. Lá, os casamentos duram de três a cinco dias. Há até grupos
musicais só para casamentos. São eles que vão buscar a noiva e
suas amigas ao hamman, onde se purificou. Etiqueta não falta.
Seria, até, uma óptima ideia, não anunciasse o ritual, em tantos
casos, tempos de clausura. Eis o problema do argumento.
Soube ainda que Bush, sob pressão dos ultra-conservadores, se
prepara para alterar a lei que só dá apoio estatal a escolas mistas.
O legislador achava, e bem, que o contrário seria promover a
discriminação sexual. Já os conservadores invocam, alem da
etiqueta, que os resultados académicos melhoram nas escolas
separadas.
Interessante de novo, até porque tenho filhos e gostaria que
fossem passando de ano. Mas acharia bem que eles, em nome de
mais um valor na nota final, reprimissem a descoberta de um
namoro? Só se essa fosse a sua escolha e, ainda assim, ela
tirar-me-ia o sono.
As escolas mistas fomentam, de facto, "a familiaridade", ou seja, a
informalidade. Geram proximidade e conhecimento. Permitem aos
jovens conhecerem as diferentes dimensões dos afectos sem que
o "pecado" sobredetermine os comportamentos. Muito por causa
das escolas mistas é que os adolescentes de hoje estão mil vezes
mais bem preparados para a descoberta da sexualidade e do
prazer do que a minha geração, a última que em Portugal viveu em
escolas assexuadas e elas ainda de bata. As mulheres da minha
geração, melhor do que eu, podem falar do preço que pagaram em
casa pelo machismo entranhado que ainda hoje nos acompanha até
nas mais simples partilhas de tarefas em casa.
Com casamento, união de facto ou simples junção, os putos de hoje
têm a sorte que faltou aos seus pais. É essa sorte que os
conservadores gostariam de abolir. E que ninguém subestime o
facto de isto se passar lá longe. Qualquer chuva nos EUA anuncia
sempre tempestade no planeta. Porque existe um elo de medo,
poderoso, que conecta todos os conservadorismos - o de Bush, o
dos integristas islâmicos e o do Papa.
Eles não entendem que a mulher tenha entrado no mundo dos
homens e o esteja a virar de pernas para ar. Como não admitem que
o desejo, a mais velha liberdade do mundo, continue a escapar às
formatações que o normalizariam. O desejo é acessível a pretos e
brancos, ricos e pobres e, pior que tudo, não tem preço. Na ordem
que rege este singular planeta, ele só pode ser subversivo
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