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MIGUEL PORTAS - DN DE 20-6-2002
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Date Posted: 00:46:22 06/20/02 Thu
Miguel
Portas
Os indisciplinados
Ao contrário da voz corrente, hoje ensina-se melhor do que no
passado. O ensino do antigamente, além de elitista, era sebenteiro,
reprimia a vontade de saber e replicava a ordem política e cultural do
regime. Graças à democratização do ensino temos hoje mais e
melhores técnicos, mais e melhores investigadores e cidadãos mais
preparados. A crise da escola moderna não deve ocultar o tempo em
que os alunos eram obrigados a decorar os rios e os caminhos de
ferro do Império ou exortavam o passado heróico como se a História
fosse uma estória de civilizadores em cruzada sobre a ignorância e a
maldade dos Outros. E os problemas de indisciplina na escola de hoje
não reabilitam os populares métodos pedagógicos da menina dos
cinco olhos ou do menino com orelhas de burro que sobreviveram até
aos anos setenta. De vez em quando convém lembrar. Porque as
críticas, justas, das famílias à escola carregam, também elas, a
saudade de um passado mitificado. E porque os políticos de direita
adoram esse senso comum com muito pouco bom senso.
A massificação do ensino teve custos de qualidade. Ela realizou-se
tardiamente, numa época onde a escola já havia perdido o monopólio
da reprodução dos conhecimentos. Para dificultar as coisas, a parte
do mundo que entrou na escola - a dos meninos que lá em casa
dormiam na sala, tinham pais analfabetos e conviviam quotidianamente
com boa parte das violências públicas e privadas - estava longe de
ser fácil. E mais recentemente chegou à escola uma terceira vaga, a
dos nascidos em terra distante da dos pais - a dos que não são de cá
e não são de lá, mas da cultura negra que se descobre nos subúrbios
dos filmes americanos passados na TV. Em suma, não têm conta os
pais dos meninos que agora podem ir à escola e que nunca foram à
escola.
Os seus filhos levam para a sala de aulas os dramas e a violência da
vida. Lembro-me de uma experiência forte, quando no início dos anos
oitenta fui animador cultural no concelho de Ourique. Existia lá uma
aldeia, Panóias, onde nenhum miúdo chegava ao nono ano. Com sete e
oito anos havia quem chegasse com os copos à sala de aulas.
Panóias batia os recordes de taxa de alcoolemia e os meninos
reflectiam isso mesmo. Era tramado sim senhor.
E no entanto insisto em chamar-lhes meninos, porque de crianças se
trata. Parte razoável da sociedade parece esquecer-se disto mesmo.
Não percebe que uma sociedade se mede pelo modo como trata as
suas crianças.
Ao mesmo tempo que este mundo entrou na escola, um novo mundo
entrou na vida das crianças sem que a escola o acompanhasse: a
televisão, a música e, em geral, a vertigem da velocidade. A esta luz, a
escola é a lesma de há cem anos. Cinquenta minutos por disciplina,
separando disciplinas. Recreio nos intervalos. Muros à volta e um
micromundo onde os adultos só entram para ensinar. O que há de
mais próximo da escola é um quartel ou uma cadeia de produção
fordista. O que surge como mais próximo da vida e do sucesso são o
Figo ou o João Pinto.
Perante estas dificuldades, que nos sugere o Governo para o ensino
deste novo milénio? Uma escola mobilizada para exames e um regime
disciplinar que, segundo notícias recentes, admite a expulsão dos
indesejados, não de uma escola, mas do próprio sistema educativo.
Nenhuma família expulsa um filho menor da sua vida. Nem a do João
Pinto, que é maior e vacinado e adora tesourar pernas de coreanos
(tinha jurado não falar de bola, mas que se há-de fazer?). Porque quer
o Governo ser mais papista que as famílias? Porque prefere fazer
desaparecer um problema a procurar resolvê-lo? Porque é mais
simples. Como imagino que o argumento da sensibilidade colha pouco,
uso outro: o puto-problema regressará. Com 1,80 metros,
desempregado, agarrado pelas economias informais e devidamente
informado que a sociedade onde vive desistiu dele. Se souber isso
desde tenra idade, não se espantem que nada espere de ninguém.
Chamar-lhe-ão madraço e rir-se-á nas vossas caras. Estúpidos serão
os que perdem tempo a estudar. Tudo bem. Só não me perguntem, por
favor, se este é o país dos meus sonhos.
A indisciplina escolar é preocupante e real, mas estamos longe das
Sementes da Violência. Contava-me há tempos uma amiga que dá
aulas num bairro "problemático" que um dos miúdos pôs uma bomba de
carnaval num caixote de lixo. Dez minutos depois, a TVI estava a
telefonar para saber se havia feridos. A histeria tomou conta da
comunicação social, dos cidadãos, dos políticos e até de alguns
professores. Sobretudo dos que não nasceram fadados para dar
aulas. A verdade é que a escola culpa os pais, os pais culpam a TV,
esta atira para a sociedade, a qual dispara sobre os políticos e a estes
sobra o elo mais fraco da cadeia de demissão colectiva: os miúdos.
Afinal, é sobre as crianças que a pena vai recair.
A indisciplina sempre existiu entre crianças e adolescentes. Tem,
aliás, outro nome: crescimento. Está mais violenta? O mundo todo está.
A questão é saber se nós, adultos, lá estamos, quando eles crescem.
Se aplicamos a decisão na hora, em vez de em intrincados
procedimentos que fazem desistir qualquer professor. E se sabemos
contratualizar a disciplina entre quantos frequentam a escola, fazendo
dela não uma expiação, mas peça de inclusão. É só isto que está em
discussão. E isto é tudo, saber se avançamos ou não em direcção à
construção de um novo muro: o que separa os "escolarizáveis" dos
"inescolarizáveis".
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