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Subject: A unidade entre socialismo e movimento operário. Uma questão candente


Author:
João Aguiar
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Date Posted: 15/08/07 11:03:46



A unidade entre socialismo e movimento operário. Uma questão candente

“A derrota das experiências de construção do socialismo na ex-URSS e no leste europeu representou uma perda para todos os povos. Para os povos que se propuseram construir uma nova sociedade, já que a reintrodução do capitalismo puro e duro nas suas sociedades trouxe um cortejo de desigualdades sociais, destruição de serviços públicos e mesmo a redução da esperança média de vida. Para os restantes povos, pois perderam um factor de contenção das garras do imperialismo e das dinâmicas mais puramente mercantilistas do capitalismo nos seus países”.

João Aguiar - 15.08.07

I – Caos ou capitalismo? Vitória do cinismo pós-moderno?

Guerras, massacres, epidemias, miséria, crime, fome, tempestades, tsunamis, desemprego, instabilidade e incontrolabilidade da vida quotidiana. Deste vendaval de eventos aparentemente caóticos e desconexos entre si, um sentimento de impotência e apatia apodera-se de uma larga parte da humanidade. O desânimo e a aceitação do mundo social tal como ele se apresenta seriam os comportamentos mais naturais e aceitáveis. A reflexão crítica e a acção colectiva remetidos definitivamente para os tempos remotos do “bom selvagem” de Rousseau seriam uma miragem do passado. Como afirma um famoso dito pós-moderno «o Iluminismo morreu, o Marxismo morreu, o movimento da classe trabalhadora morreu e o autor destas palavras não se sente lá muito bem». O mundo em que vivemos, dizem-nos, é o que é, ponto final. Tal tautologia representaria o fim da aventura humana. A forma das escovas de dentes, o desenho dos automóveis, o lay-out dos sites da Internet, o tipo de chips dos processadores dos computadores, no fundo, toda a aparência dos objectos humanos poderia mudar incessantemente, mas, o complexo de sensações de desconfiança, quando não rejeição, das movimentações das massas populares seria imutável. Como imutável seria o mundo social, reduzido a uma superfície dura, inquebrável à acção humana. Fora deste discurso circular mundo caótico e incontrolável – apatia – imobilidade das massas – mundo social imutável – aceitação de um mundo caótico nada pareceria existir. O mundo seria uma entidade fragmentada e estilhaçada em indivíduos atomizados e onde as classes teriam desaparecido. O Estado seria uma instituição em erosão. A exploração capitalista não seria mais do que uma velharia marxista e um fóssil da Revolução Industrial.

E, contudo, o capitalismo persiste. Os trabalhadores continuam a vender a sua força de trabalho e a produzir mais-valia apropriada por uma camada ínfima da humanidade: o grande capital nacional e transnacional. O Estado, mantendo a sua autonomia relativa, continua no essencial a funcionar como «uma comissão para administrar os negócios comuns de toda a classe burguesa» (Marx e Engels, 1975, p.62). Todas as áreas da vida humana e social são crescentemente transformadas em (novas) mercadorias. Neste âmbito, lembremos o que sucede na saúde, na educação ou ao saber e ao conhecimento traduzidos em propriedade intelectual. Ao mesmo tempo, o imperialismo continua a condenar povos inteiros ao massacre (Palestina, Iraque, Afeganistão) ou a reduzir outros à condição humana mais abjecta (olhe-se para a África Subsariana e para faixas territoriais cada vez mais extensas no Sudeste Asiático ou na América Latina). A exploração da periferia do sistema capitalista internacional por via da rapina dos recursos naturais, da exploração mais despudorada dos trabalhadores desses países ou por intermédio da engenharia financeira do FMI e do Banco Mundial, aí estão a comprovar que o capitalismo, nas suas características estruturais nucleares, existe e reproduz-se com uma perversidade exponenciada.

II – Crise de civilização

Face a este cenário não nos parece difícil considerar que a humanidade se encontra numa encruzilhada. Nunca como hoje a famosa palavra de ordem “Socialismo ou barbárie” de Rosa Luxemburgo foi tão actual. De facto, a humanidade encontra-se numa encruzilhada em que o seu destino não está pré-definido nem é, muito menos, fatal. Provavelmente, a única certeza desta complexa equação consiste no facto de que não serão as classes dominantes, o capital e suas personificações mais salientes – as multinacionais, o Estado capitalista, as organizações supranacionais como a ONU, a UE, a OMC ou o FMI – que poderão dar um novo rumo à «crise de civilização» (Urbano Rodrigues, 2002; 2005) em que a humanidade se encontra mergulhada. Este conceito parece revestir relevância analítica para compreender a actual conjuntura histórica e como esta não é fruto de causas naturais e inevitáveis. Assim, a crise de civilização contempla três dimensões:

1) Em primeira instância, a actual crise de civilização assenta na «crise estrutural do sistema do capital» (Meszaros, 2002, p.603-980), numa crise do sistema económico capitalista. A súmula de contradições do capitalismo:

a) entre o carácter social da produção e a apropriação privada da riqueza criada;

b) entre a necessidade imanente da acumulação se expandir indefinidamente e os limites que o peso do trabalho morto (capital constante) coloca à valorização do trabalho vivo (produção de mais-valia a partir da elevação da produtividade do trabalho assalariado);

c) entre a canalização de enormes volumes de capital para a esfera financeira – capital fictício – e a correlativa ociosidade de capital produtivo inutilizado;

d) entre a necessidade de baixar os custos salariais e, ao mesmo tempo, elevar os padrões de consumo de modo a dar vazão às mercadorias/bens de consumo produzidos;

e) entre o intento de acelerar freneticamente a rotação do capital (D-M-D’) e a obsolescência das mercadorias, e o metabolismo próprio que a natureza tem na reposição dos seus recursos;
pavimentam o actual estado de aprofundamento das contradições do sistema. Se as crises periódicas como a de 1929 tendem a ser menos frequentes, a verdade é que a economia capitalista tende a cair num permanente estado de «estagnação» (Sweezy, 2004, p.69-77), como a queda das taxas de crescimento económico à escala mundial (à excepção da China e da Índia) nas últimas décadas parecem demonstrar: «o agregado global das taxas de crescimento económico fixava-se em cerca de 3,5% e mesmo nos conturbados anos 70 as taxas de crescimento caíram apenas para os 2,4%. Mas as subsequentes taxas de crescimento de 1,4% e 1,1% nas décadas de 80 e 90 respectivamente» (Harvey, 2005, p.154) são um claro sintoma das dificuldades do capitalismo para relançar um novo e pujante ciclo de acumulação de capital. O capitalismo na sua fase neoliberal tem patenteado uma clara incapacidade para promover uma nova fase de crescimento económico sustentado como aconteceu com anteriores regimes de acumulação (capitalismo concorrencial no século XIX; fordismo no pós-Segunda Guerra Mundial até meados dos anos 70).

2) Em segundo lugar, a crise de civilização é igualmente atravessada por uma aguda crise política. Em traços muito gerais, esta reflecte-se primeiramente na destruição de todo um conjunto de serviços públicos (educação, saúde, segurança social), funções sociais do Estado duramente conquistadas pela luta de gerações de trabalhadores. Funções sociais do Estado que, apesar do seu carácter incompleto – como qualquer conquista no capitalismo – funcionavam (e funcionam) como preciosos contributos para melhorar as condições de vida da classe trabalhadora. Ora, a estagnação que tem caracterizado o desenvolvimento do capitalismo neoliberal repercute-se então na necessidade de expandir as suas áreas de negócio, incorporando mais e mais esferas da vida social no circuito da produção de mercadorias. Assim, o grande capital, em parceria com os governos rendidos à doutrina neoliberal, tem se vindo a apropriar destes importantes serviços públicos, onde as privatizações aparecem como o principal instrumento na concretização deste processo de mercadorização. Em paralelo, assiste-se a um crise dos chamados “sistemas de legitimação democrática”. Isto é, as instituições estruturantes da democracia representativa tendem a ser distorcidas e esvaziadas do seu (cada vez menor) poder, passando a desempenhar mais um valor facial e cosmético e menos uma real capacidade de intervenção política. Nesse sentido, os órgãos executivos do Estado – governo, tribunais, serviços de inteligência, altas patentes das Forças Armadas – concentram em sua volta o poder de Estado, e onde os parlamentos e o poder local democrático vão perdendo funcionalidade efectiva na determinação das directrizes políticas mais substantivas[1].

Esta lógica alicerça-se num processo mais geral de um certo endurecimento da política repressiva do Estado, tendo-se patenteado em alguns casos uma propensão para a “fascização” de certas políticas ou ramos do aparelho de Estado. “Fascização” que adquire um novo sentido, pois pode conviver perfeitamente com um bipartidarismo ou multipartidarismo de partido único e com instituições formalmente democráticas. A nível interno, sob a capa das leis antiterroristas ou da suposta reposição da ordem e, a nível externo, sob a capa da defesa dos direitos humanos e das guerras preventivas. O imperialismo estadunidense é, a este título, o caso mais notável e mais evidente.

3) Finalmente, a crise de civilização expressa-se no plano cultural. A destruição da cultura popular, a valorização do sensacionalismo, dos instintos primários, da imagem em detrimento da palavra e do raciocínio elaborado, são algumas das propriedades mais evidentes da cultura actual. Ao mesmo tempo, a ideologia pós-modernista (vd. secção IV, ponto 3) baseada nos ideais do consumismo, do individualismo e do cinismo mais vincado em relação à acção política colectiva, é um outro factor cultural potenciador da regressão dos níveis de consciência social e política das massas populares. Sintomaticamente, a crise da razão – apresentada, paradoxalmente, como perfeitamente racional pelos ideólogos do status quo – representa uma alienação de um património histórico e de reflexividade crítica que perpassa as altas instâncias do Estado (veja-se a administração Bush), as universidades ou os media. É como se o irracional – a acumulação pela acumulação – fosse o empreendimento mais racional do mundo. É como se, por exemplo, as políticas neoliberais dos governos que reproduzem o irracional da produção capitalista – fazer do sujeito (o Homem) um objecto e do objecto (o capital) um sujeito – fossem o resultado de uma lógica largamente debatida, racional e moralmente acertada.

III – Inércia e movimento. Uma breve abordagem à evolução da relação teoria socialista/movimento operário

Assim, esta crise de civilização caminha lado a lado com o que poderemos denominar de situação de inércia tendencial da classe trabalhadora no momento presente. Por outras palavras, os factores estruturais (económicos, políticos e ideológico-culturais) da crise de civilização contribuem para refrear e dificultar a possibilidade de intervenção colectiva dos trabalhadores e de outras camadas populares. No fundo, trata-se de um efeito das estruturas do modo de produção capitalista na contenção das manifestações de contestação das massas ao sistema. Todavia, não se esqueça que esta situação não é aqui descrita aleatoriamente como tendencial. Ou seja, se a maioria das classes populares e dos povos ainda não atingiram uma clara consciência do actual contexto de ofensiva do grande capital internacional e nacional, é indesmentível que a luta operária e popular está longe de ter desaparecido. Portanto, existe um recuo – a nosso ver, conjuntural – da luta de massas em termos globais, mas tal facto deve levar em conta três aspectos: 1) a luta de classes não acabou. A hegemonia no processo mais geral de confrontação entre as classes sociais não está apenas num dos lados. Por outras palavras, a luta de classes comporta tanto a luta organizada dos trabalhadores como, do outro lado da contenda, da burguesia. No actual contexto, a hegemonia na determinação da direcção da luta de classes está do lado da grande burguesia, sem que isso signifique o fim da luta operária. A ofensiva neoliberal das últimas três décadas é o sinal mais forte da luta de classe por parte do grande capital; 2) um recuo geral da luta – que nunca é homogéneo em toda a parte do mundo – não é sinónimo do fim da luta nem sequer sinal de impossibilidade de a relançar num futuro mais ou menos próximo. A maior ou menor capacidade de resistência da classe trabalhadora e seus aliados nas conjunturas de recuo influencia proporcional e directamente a futura capacidade de mobilização e de avanço dessas mesmas forças; 3) um recuo geral da luta não implica que isso aconteça em todo o lado e uniformemente. Por exemplo, apesar de vivermos num contexto internacional de dura resistência à ofensiva neoliberal, o processo revolucionário bolivariano na Venezuela avança e em países como a Bolívia e o Equador as classes populares buscam modelos alternativos de desenvolvimento económico e social. Mesmo quando a burguesia tem a iniciativa na luta de classes tal não significa que a classe trabalhadora e as suas organizações não saibam resistir com o recurso a formas de luta avançadas e com larga participação das massas. Repare-se no caso português: grandes manifestações de massas em 12 de Outubro de 2006 (100 mil trabalhadores), 2 de Março (150 mil trabalhadores), 28 de Março (10 mil jovens trabalhadores) e 5 de Julho em Guimarães e sob um calor abrasador (20 mil trabalhadores). Pelo meio registe-se a maior iniciativa de luta e resistência dos trabalhadores portugueses contra o governo neoliberal de Sócrates, a Greve Geral de 30 de Maio. Todas estas iniciativas coroaram todo um conjunto de pequenas lutas reivindicativas em inúmeras empresas pelo país fora, demonstrando a ligação às massas e o papel insubstituível, no plano político, do PCP e, no plano sindical, da CGTP na direcção da luta de massas. Portanto, mesmo quando a correlação de forças é favorável ao grande capital, a luta de resistência das massas e a sua mobilização é possível.

Por conseguinte, descontados alguns casos nacionais, considera-se que no global a luta popular é ainda, no actual contexto internacional, quantitativamente menos frequente e em termos qualitativos perdeu, em muitos casos, um lastro socialista, tornando-se ideologicamente mais difusa e mais inconsistente. No plano da substância política da luta operária verificou-se, pois, uma tendência para boa parte da classe se separar ideológica e politicamente do seu quadro ideológico fundamental e o único que pode enfrentar coerentemente as classes dominantes: o socialismo, o marxismo. Chegamos assim ao âmago de uma das questões político-ideológicas mais contundentes das últimas décadas: o desligamento da relação teoria socialista e marxista com o movimento operário e muitas das suas organizações. Ou seja, um dos fenómenos mais importantes do movimento operário e popular e que mais concorreu para o seu sucesso histórico no passado – a sua ligação indissolúvel com o marxismo – sofreu um processo de erosão. Isto não aconteceu de um dia para o outro, tal como o processo de fusão do socialismo marxista (e da posterior contribuição leninista [2]) com a classe trabalhadora durou décadas a construir. Na próxima secção deste artigo voltaremos às causas da reversão deste processo.

Entretanto, note-se que o cindir do movimento relativamente à teoria revolucionária estende-se em vários campos. Na subjectividade colectiva de classe. Na descaracterização de partidos e sindicatos anteriormente comprometidos com o socialismo. Na perda de ligação de algumas organizações políticas e sociais relativamente às massas populares, apesar de manterem um projecto socialista de transformação social. Na permeabilidade dos naturais sentimentos de protesto dos trabalhadores ao discurso pretensamente de esquerda dos partidos sociais-democratas e outras organizações ditas da Nova Esquerda. Em suma, as consequências para a consciência de classe e para a organização política e sindical da maioria das classes trabalhadoras dos vários países foram (e são) vastas. Assim, no que à reflexão política e ideológica diz respeito, o repensar da necessidade de conectar a teoria socialista ao movimento operário é um dos pontos capitais para a actualidade da luta anti-capitalista. Trata-se de um problema político e ideológico agudo e que importa reflectir e superar de modo a que a ofensiva da burguesia possa ser travada e para que a classe trabalhadora e os seus aliados se constituam como força social autónoma e como sujeito colectivo da História.

Saliente-se ainda que mais do que um problema teórico, este é um problema eminentemente prático. Será a luta da classe trabalhadora e dos povos que dará resposta real e efectiva a esta questão. A reflexão teórica desta problemática não é condição suficiente para alterar a marcha dos acontecimentos. Contudo, a reflexão teórica é condição necessária para que a luta tenha um sucesso prático.

IV – Causas próximas da crise de identidade política da classe trabalhadora

Com efeito, a crise de civilização não está desligada desta crise de identidade política da classe trabalhadora. Uma alimenta a outra. A crise estrutural do capitalismo implica a elevação dos níveis de exploração dos trabalhadores, logo mais constrangimentos económicos, políticos e ideológicos têm efeito na desorganização política e na desorientação ideológica da classe trabalhadora. Por seu turno, a menor mobilização operária e dos povos impede que surjam novas alternativas globais a um modo de produção que chega mesmo a ameaçar a continuação da vida no planeta. Nesse sentido, constata-se uma relação estreita entre o aprofundamento da crise do capitalismo e o processo de erosão da consciência socialista do seio do movimento operário.

Todas estas questões levam-nos a equacionar os factores que contribuíram (e contribuem) para a crise de identidade política da classe trabalhadora. Um primeiro factor – a crise de civilização – já foi abordado pelo que não voltaremos a abordá-lo. Sem qualquer tipo de ordenação, sublinhem-se os seguintes factores:

1) a reestruturação do capitalismo nos últimos 30 anos. Como resposta à crise do fordismo, o sistema reajusta-se. Tanto na base tecnológico-organizacional e produtiva da economia (o toyotismo), como na esfera da circulação do capital com a financeirização das economias (Sweezy e Magdoff; 1988; Fred Magdoff, 2006), a estrutura económica capitalista procura controlar as suas contradições (sem nunca as eliminar) e prosseguir o circuito da acumulação. Nas instâncias política e cultural, como já vimos aquando da abordagem das dimensões da crise de civilização, o capitalismo opera igualmente uma reconfiguração, tendo em mente o seu papel relevante na reprodução global do sistema.

2) o acentuar dos traços humanamente mais nefastos do imperialismo obstaculiza e dificulta a acção colectiva das massas populares. O militarismo presente nas carnificinas dirigidas pelas potências centrais do sistema imperialista no Iraque, Ruanda ou Timor. O securitarismo patente nos complexos prisionais (para não chamar campos de concentração de novo tipo) de Abu-Ghraib e de Guantanamo, no Echelon – sistema mundial de vigilância dos cidadãos –, nos voos da CIA em espaço europeu com prisioneiros da chamada “luta contra o terrorismo” e nas restrições legais e jurídicas aos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. A redução da população de inúmeros países à miséria por via dos “programas de ajustamento estrutural” do FMI e do Banco Mundial.

3) no campo cultural, o pós-modernismo como uma ideologia que nega a razão e que fomenta o individualismo e o consumismo, consagra um fenómeno de ocultamento das raízes de classe do actual estado ecológico e social do planeta. Uma ideologia como o pós-modernismo, tematizado como uma realidade cultural abrangente, assenta em pressupostos que dificultam a tomada de consciência dos trabalhadores: a) a assunção de que vivemos apenas numa sociedade do consumo e já não da produção capitalista; b) a assunção de que as mercadorias criadas em contexto de trabalho assalariado, portanto, de exploração capitalista, teria dado lugar a um “reino do signo” (Baudrillard), ou seja, onde o simbólico teria superado definitivamente as contradições da base material capitalista; c) a valorização da imagem em detrimento do raciocínio e da palavra; d) a rejeição absoluta do que chama de “grandes narrativas” (casos do Iluminismo, provavelmente a ideologia burguesa mais avançada, e do marxismo); e) a defesa da tese da volatilidade das fronteiras entre o real e o virtual, procurando criar a ideia que há uma indeterminação do real. Quer dizer, não havendo realidade concreta, mas tantas realidades possíveis quantas as que subjectivamente os actores sociais individualmente considerados podem imaginar, o real é assim impossível de ser compreendido. Por conseguinte, a transformação social seria um logro e uma impossibilidade prática.

4) a derrota das experiências de construção do socialismo na ex-URSS e no leste europeu representou uma perda para todos os povos. Para os povos que se propuseram construir uma nova sociedade, já que a reintrodução do capitalismo puro e duro nas suas sociedades trouxe um cortejo de desigualdades sociais, destruição de serviços públicos e mesmo a redução da esperança média de vida. Para os restantes povos, pois perderam um factor de contenção das garras do imperialismo e das dinâmicas mais puramente mercantilistas do capitalismo nos seus países. Para todos os povos e para todos os trabalhadores, na medida em que a possibilidade de edificarem uma sociedade socialista passou a ser vista com desconfiança. Por outras palavras, a esperança dos povos e dos trabalhadores numa alternativa ao capitalismo ficou abalada. Do ponto de vista da luta política, este foi o sinal mais negativo do fim da URSS.

5) o abandono dos ideais marxistas por parte de muitas organizações políticas e sindicais e a sua conversão a teses que apenas preconizam a aplicação de paliativos aos efeitos do sistema (e não ao sistema capitalista no seu conjunto), desarmou muitos trabalhadores em termos ideológicos, abrindo espaço a um mais fácil controlo destes por parte do Estado e das classes dominantes.

6) as derrotas que a classe trabalhadora sofreu na década de 70 (o eurocomunismo em Espanha, França e Itália; o afogar em sangue da experiência da Unidade Popular no Chile, os ataques à revolução portuguesa de 1974/75) e na primeira metade da década de 80 (como as derrotas das greves dos mineiros no Reino Unido e dos controladores aéreos nos EUA), abriram brechas numa até então sólida organização operária e popular à escala internacional.

V – Formação da classe trabalhadora: a unidade teoria socialista – movimento operário

Por tudo o que se avançou neste ensaio, conclui-se, necessariamente, que uma das tarefas mais importantes para a organização de um movimento operário e popular terá que passar, como no passado, pela fusão entre teoria socialista e a classe trabalhadora. Não se trata de repetir mecanicamente as décadas de luta que forjaram a classe trabalhadora como uma classe politicamente independente da burguesia. Se é verdade que as dinâmicas históricas nunca se copiam umas às outras, este processo de formação da classe trabalhadora como uma classe autónoma dos interesses das classes dominantes e com uma perspectiva histórica e uma visão do mundo próprias, parece-nos indispensável.

Adicionalmente, importa salientar que tal processo de organização da classe trabalhadora como um movimento político próprio e com uma perspectiva própria (de classe) da sociedade e da História, só é possível pela já mencionada interpenetração entre a prática política da classe trabalhadora com a teoria marxista. A reiterada insistência neste ponto não é casual. No limite e em condições ideais, teoria e prática revolucionárias fundem-se de tal maneira que uma é umbilicalmente inseparável da outra. Desde a luta económica reivindicativa, circunscrita aos problemas que os trabalhadores vivenciam no seu local de trabalho e na sua condição directa de explorados, até à luta política mais geral que une os trabalhadores de todos os sectores contra os governos neoliberais e pró-capitalistas, o desenvolvimento da luta operária de massas é motor de aprendizagem política. Sem luta não há a compreensão subjectiva das massas relativamente ao carácter explorador do capitalismo. Por outro lado, é na luta de massas, nos métodos de luta e no sucesso ou insucesso da táctica e/ou da estratégia política das organizações de classe que se tempera a teoria socialista.

Em paralelo, a luta deve assumir um carácter crescentemente consistente em termos orgânicos. Sem descartar a criatividade do povo em acção, a luta necessita de estruturação e de fortalecer a coesão e a unidade do colectivo. Ora, para que tal aconteça só uma avaliação da complexidade de um qualquer contexto permite calibrar a prática política. Portanto, a constituição de um movimento operário e popular – primeira condição e primeiro passo para que se concretize o projecto socialista – não está desligada do constante, desejável e necessário rejuvenescimento do marxismo.

Não há fórmulas mágicas a retirar da cartola de um qualquer iluminado, nem receitas prescritas por um qualquer herói individual ou salvador da humanidade. Só a acção colectiva, consciente e democrática das massas populares e o seu poder transformador, poderá inscrever novas formas de organização da vida económica, política e cultural em todo o tecido social. Assim, consideremos algumas pistas que nos parecem úteis para que a unificação entre teoria socialista e movimento operário seja, em novas formas, uma realidade.

Vejamos primeiro o lado da teoria socialista. Nesta área importa compreender o marxismo a partir do seu núcleo duro conceptual e (saber) aplicar esses conceitos de forma flexível, integrada e inovadora à realidade social envolvente. Ou seja, conceitos e postulados como a luta de classes; a relação complexa entre o poder de Estado e o poder da classe dominante; a exploração capitalista por via da extracção da mais-valia; o modo de produção capitalista como uma estrutura articulada entre as instâncias política, cultural e económica (em que esta adquire um papel de determinação em última instância); a relação triádica entre imperialismo – capital financeiro – militarismo; entre outros, são conceitos e categorias teóricas absolutamente necessárias para uma “avaliação concreta da situação concreta” (Lenine).

Em consonância, a vitalidade heurística, ou seja, a qualidade interpretativa do marxismo enquanto «continente científico» (Althusser, 1998, p.7) é um requisito inestimável para uma mais qualificada acção das organizações políticas que se reivindicam do marxismo e a quem cabe boa parte do papel de fundir a teoria socialista com as classes populares[3]. Assim, o aprofundamento e o estudo exaustivo de temáticas como a esfera cultural, a recomposição das classes sociais, a reestruturação da organização do processo de trabalho, a compreensão das dinâmicas estruturantes do sistema capitalista internacional em conjunção com as contradições do capitalismo ao nível da produção de valor e sua transposição territorial, são parte integrante de uma correcta e avalizada estratégia política. São a sua infra-estrutura teórica. Portanto, o revigoramento da teoria marxista por intermédio de uma perspicaz e perseverante adequação[4] dos conceitos fundamentais do materialismo histórico às novas reconfigurações do capitalismo não esvazia as suas forças no âmbito da especulação teórica ou do academismo. De facto, a unidade entre ciência e prática política socialistas e revolucionárias contribui para fortalecer ambas. Uma ciência ancorada no pulsar do metabolismo social permite um mais apurado conhecimento das trajectórias históricas da humanidade. Por seu turno, um fecundo conhecimento científico da realidade social afina a prática política das massas populares, reduzindo a margem de erro inerente a qualquer acção humana e fundamenta avaliações mais profícuas da conjuntura política, elevando as possibilidades de vitória das forças sociais e políticas portadoras de um projecto de transformação revolucionária e progressista da sociedade.

Simultaneamente, a aplicação da teoria marxista não se pode deter em conceitos estritamente científicos como os que acabamos de enunciar no parágrafo anterior. Portanto, são igualmente essenciais cadeias de conceitos com uma dimensão mais operatória, logo, vinculados ao palpitar da vida concreta dos trabalhadores e das suas aspirações: a independência da luta política da classe trabalhadora; a luta pelo poder de Estado; o papel da luta de massas em torno de problemas que afectam directa e imediatamente as populações; a denúncia explícita da discrepância entre o lucro dos bancos e dos grandes grupos económicos e a massa salarial dos trabalhadores; a denúncia dos crimes do imperialismo e levar aos trabalhadores o espírito da solidariedade internacionalista, da solidariedade com todos os povos que resistem ao imperialismo dos EUA e seus aliados; o carácter pivotal das organizações de massas, ligadas aos trabalhadores e com uma linha política capaz de orientar a direcção da luta popular.

Do lado da prática política – portanto, já não apenas do prisma da teoria – procuraremos sustentar a posição de que a própria dinâmica da luta da classe trabalhadora induz e auxilia a aproximação da classe ao socialismo, à teoria marxista. Porém, não há inevitabilidades na história da humanidade. O balão de oxigénio que a forma actual dominante de organização das sociedades capitalistas, quer dizer, o balão de oxigénio que o neoliberalismo detém é limitado e a sua legitimidade incontestada tenderá a desfalecer aos olhos de amplas camadas da população trabalhadora, estendendo-se a outras classes não exploradoras (imenso campesinato do Terceiro Mundo e camadas intermédias em proletarização).

Na América Latina, o estreitamento da base social de aceitação e apoio ao neoliberalismo é porventura mais visível do que no resto do mundo. Ora, parece-nos possível que se adense a reciprocidade entre retrocessos sociais (desemprego, desigualdades sociais, guerras, etc.) e ambientais à escala global e, paralelamente, um aumento do número de povos e de trabalhadores que contestam o neoliberalismo e/ou os seus efeitos. Desse modo, o pôr-se em movimento das massas adquire um carácter de efeito resultante dos próprios ataques do capitalismo e do imperialismo. Daqui deriva necessariamente um determinado grau de espontaneidade das lutas populares. A esta natural espontaneidade importa conjugar a ligação da classe trabalhadora em luta e em movimento, com organizações políticas[5], sociais e sindicais capazes de enquadrar a luta em torno de objectivos gerais (exemplo, a luta contra os governos neoliberais ou a luta pelo socialismo) e as necessidades colocadas pelas massas em cada curva do processo histórico. Estabelece-se um cordão umbilical entre a classe e a teoria socialista. Assim, da nossa perspectiva, o desenvolvimento da luta popular é factor de educação e consciencialização política da classe. Dando um carácter estruturado, coerente e politicamente orientado, as organizações próprias e autónomas da classe, potenciam ainda mais a luta, funcionando simultaneamente como bússola no seio da ebulição das convulsões sociais e como âncora nos momentos de recuo da classe trabalhadora. Em síntese, diremos que a confiança, por um lado, na capacidade de iniciativa das massas, nas suas justas aspirações de justiça social e de luta pela igualdade e, por outro lado, a confiança na formação, no reforço e no apetrecho orgânico e ideológico das organizações da classe trabalhadora e sua ligação à classe são dois factores a tomar em linha de conta para que, desta forma, se torne possível uma maior e mais estreita aproximação da prática dos movimentos populares à teoria socialista e marxista.

VI – Em jeito de conclusão

Como dissemos acima, não há fórmulas mágicas para resolver o actual estado de cisão movimento operário/teoria socialista na generalidade dos países capitalistas, nomeadamente nos países mais avançados da UE e dos EUA. Daí que seja um tanto ou quanto natural que este texto desiluda o leitor ávido de soluções para o actual impasse. Mas como também advertimos anteriormente, as soluções para as encruzilhadas da prática resolvem-se no tabuleiro da prática. Significará isso uma demissão da actividade teórica? Pelo contrário, trata-se de colocar a reflexão teórica no seu devido lugar de perspectivação e problematização da prática, como muleta da prática, não como substituta da prática. O problema filosófico com que Marx se confrontava na superação do idealismo hegeliano e do materialismo de Feuerbach pelo materialismo histórico, partilha um terreno comum nas dificuldades que enfrentamos hoje para no plano mais micro – enquanto marxistas unificarmos cada vez mais teoria e prática revolucionárias – e no plano mais macro e mais complexo, de unificarmos o património político e teórico marxista ao corpo (por enquanto adormecido) dos trabalhadores e do povo, aos verdadeiros sujeitos da História.



Notas:
[1] Não confundir limitação estrutural do poder dos parlamentos com qualquer linha política (aventureirista) de não participação das forças revolucionárias e progressistas nesse órgão da democracia burguesa. A intervenção no parlamento em defesa da mais pequena conquista ou direito e aspiração dos trabalhadores e o trabalho de denúncia das perversidades do sistema e desmontagem da sua mecânica interna, continuam a ser rotundamente necessárias. Luta parlamentar naturalmente enquadrada pela luta de massas e pela assunção de que a perspectiva última da acção dos comunistas não se esgota no parlamento. Este é sempre um meio, nunca um fim.
[2] Não faz qualquer sentido desligar o leninismo do marxismo. Em termos práticos, não há marxismo de um lado e leninismo do outro como se de duas concepções do mundo se tratassem. O leninismo foi a mais decisiva contribuição que o marxismo recebeu desde a morte de Marx e Engels. Dito de uma maneira simples, o leninismo consiste na vertente político-prática do marxismo e é o nó de ligação entre a concepção materialista da história (o materialismo histórico, a teoria marxista) e as classes populares. A organização partidária e seu papel de orientador da luta operária e popular, o debate teórico e ideológico, o centralismo democrático, a teoria do imperialismo, o prosseguimento dos estudos sobre a transição socialista (presente nos textos de Marx de 1848 – Manifesto Comunista –, 1852 – O 18 de Brumário de Luís Bonaparte – e 1871 – A Guerra Civil em França) avultam entre os mais significativos contributos de Lenine para o enriquecimento do marxismo. O leninismo – que não acabou com Lenine – representa o consumar da vitória do marxismo ao nível dos métodos de organização e da determinação da táctica e da estratégia no seio dos partidos políticos mais avançados e mais consequentes na defesa dos interesses de classe do proletariado no seu conjunto. Por conseguinte, sempre que se falar em marxismo neste ensaio, é do marxismo-leninismo que se trata.
[3] Não cabe no âmbito deste artigo analisar a célebre questão da consciência operária como intrinsecamente trade-unionista, portanto, sem uma consciência política de classe, papel que caberia exclusivamente ao Partido de vanguarda. Esta é a tese, grosseiramente apresentada, que Lenine apresenta em Que Fazer?, baseando-se em Kautsky. Registe-se apenas que a posição de Lenine irá adquirir com os acontecimentos das Revoluções Russas de 1905 e de 1917 um registo ligeiramente distinto. Obviamente sem negar o papel das organizações políticas comprometidas com o socialismo em levar a teoria marxista às massas, Lenine não rejeita igualmente a existência de capacidade de desenvolvimento de tendências políticas de cariz socialista por parte da acção própria da classe trabalhadora. A problematização de Lenine acerca dos Sovietes (vejam-se as Teses de Abril e O Estado e a Revolução) revela a compreensão que o genial revolucionário russo teve da relação dialéctica entre espontaneidade (das massas) e organização (o Partido).
[4] Daí a importância da assimilação e compreensão da dialéctica materialista, do método de investigação de Marx. (Vd. Bertell Ollman, 2005).
[5Destaquem-se, nesse sentido, as seis características de um Partido Comunista enunciadas por Álvaro Cunhal e que são perfeitamente aplicáveis a qualquer organização política que se reivindique marxista e que lute pela construção do socialismo: «1) Ser um partido completamente independente dos interesses, da ideologia, das pressões e ameaças das forças do capital; 2) Ser um partido da classe operária, dos trabalhadores em geral, dos explorados e oprimidos; 3) Ser um partido com uma vida democrática interna e uma única direcção central; 4) Ser um partido simultaneamente internacionalista e defensor dos interesses do país respectivo; 5) Ser um partido que define, como seu objectivo, a construção de uma sociedade sem explorados nem exploradores, uma sociedade socialista; 6) Ser um partido portador de uma teoria revolucionária, o marxismo-leninismo, que não só torna possível explicar o mundo, como indica o caminho para transformá-lo» (Cunhal, 2003).


Bibliografia
ALTHUSSER, Louis (1998) – Para Leer El Capital. 23ªed. México: Siglo XXI.
CUNHAL, Álvaro (2003) – As seis características fundamentais de um Partido Comunista. In http://resistir.info/portugal/seis_caracteristicas.html
HARVEY, David (2005) – A brief history of neoliberalism. Oxford: Oxford University Press.
MAGDOFF, Fred (2006) – The explosion of debt and speculation. In Monthly Review, volume 58, nº6. p.1-23.
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich (1975) – Manifesto do Partido Comunista. Lisboa: Edições Avante.
MESZAROS, Istvan (2002) – Para Além do Capital. São Paulo: Boitempo.
OLLMAN, Bertell (2005) – Dance of the Dialectic: steps in Marx’s method. Chicago: University of Illinois Press.
SWEEZY, Paul; MAGDOFF, Harry (1988) – The Irreversible Crisis. New York: Monthly Review Press
SWEEZY, Paul (2004) – Why stagnation?. In Monthly Review, volume 56, nº5. p.69-77.
URBANO RODRIGUES, Miguel (2002) – Intervenção no Fórum Social de Florença. In http://resistir.info/mur/firenze.html
URBANO RODRIGUES, Miguel (2005) – Do final da II Guerra Mundial à Crise de Civilização. In http://resistir.info/mur/guerra_abr05.html

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