Subject: Promiscuidades |
Author:
FERNANDO ROSAS
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Date Posted: 08:52:56 06/12/02 Wed
Convém ter a memória afinada nestas coisas: quem inaugurou, ou reinaugurou, a época da promiscuidade da política com os grandes interesses económicos, a época dos "almoços de trabalho", dos "encontros de reflexão", das festas, das intimidades públicas e privadas, quem retomou esse estilo de proximidade suspeita e algo indecorosa entre o servidor público e os homens de negócios foram os governantes do PS. Só que o paradigmático Pina Moura e muitos dos ministros, secretários e subsecretários, assessores e C.ª do PS, recém-chegados a este mundo e às suas sociabilidades, estadistas de "pé fresco", debutantes nos meios da alta finança, apesar de dóceis, apesar de deslumbrados, apesar de obedientes, eram corpos relativamente estranhos.
É certo que com paternal e infinita paciência, com ilimitada condescendência, os Belmiro de Azevedo, os Espírito Santo, os Champalimaud, sentaram-nos à mesa, passearam-nos de braço dado, prodigializaram-lhes bons conselhos e, valha a verdade, nem se saíram nada mal: das privatizações aos privilégios fiscais, não têm razões de queixa.
Mas era gente de "fora", hesitante, vulnerável, insusceptível das medidas de grande estilo que a situação exigia. Por isso, o apoio inicial ao guterrismo foi desaparecendo em favor de um governo de "técnicas competentes" que fosse como que um prolongamento deles próprios, dos seus interesses e negócios. Um governo que, saído dos próprios quadros das grandes empresas, fosse uma espécie de comissão executiva e arbitral da sua estratégia de acumulação e expansão. É esse o perfil essencial do actual Governo do PSD-PP. O ministério que, desde o 25 de abril de 1974, mesmo considerando outros da direita, regista o maior grau de promiscuidade entre a governação e o capital, entre o serviço público e os interesses privados.
Vai-se ao "futebolgate" do Governo com o Benfica e o que é que se verifica? Que o presidente do Benfica, em plena campanha eleitoral, anunciou o inusitado apoio oficial dos corpos sociais do clube ao PSD, em nome de o futuro Governo deste partido lhe ir resolver um complicado problema que não se disse qual era; verificou-se que seis dias depois de o Governo tomar posse, e com grande discrição, a ministra das Finanças despachou caucionando a aceitação das acções não cotadas da SAD do Benfica como garantia do pagamento da sua dívida fiscal, o que se fez pela primeira vez em relação a uma sociedade anónima desportiva: aceitar como garantia, como garantia não idónea, acções com mero valor sentimental; verificou-se que o primeiro-ministro mentiu enfaticamente ao Parlamento ao afirmar não existir qualquer tratamento de favor autorizando o pagamento de dívidas fiscais com acções e que o actual Governo não tomara nenhuma iniciativa nesta matéria; verificou-se que a ministra das Finanças, em comunicado do dia 31 de Maio passado, voltou a mentir quanto à substância dos factos, ao repetir que desde a posse do Governo não fora proferido qualquer despacho ministerial autorizando o pagamento, por qualquer contribuinte, de dívidas fiscais com acções; verificou-se, finalmente, agravando a fundamentada suspeita de favor negociado durante a campanha eleitoral, que o advogado do Benfica que, na altura, propusera pelo clube esta controversa solução, Vasco Valdez, se tinha transformado, qual larva em borboleta, em ridente secretário de Estado para os Assuntos Fiscais do Governo PSD-PP!
Mas pega-se no agitado "dossier" da RTP e o que é que se constata? Que o Governo da direita, sob o pretexto de combater o imenso desastre da política do PS nesta área, investiu cegamente contra o serviço público televisivo sem qualquer ideia de fundo, sem estratégia alternativa, sem ideias precisas, salvo uma: reduzir a televisão pública a um único canal. Não sabe, nem talvez lhe interesse, reflectir sobre que serviço público é que sobra como viável desta desastrosa castração.
Sabe é que está disposto a desafiar o conselho de opinião, a tentar silenciá-lo através de medidas chumbadas como inconstitucionais pelo Tribunal Constitucional, até a declarar a falência e encerrar a RTP provocando o maior despedimento colectivo da nossa história social recente. Tudo com o fito de encerrar um canal público (primeiro passo, entenda-se, para fechar o outro), ou seja, com o propósito fixo e esse, sim, perfeitamente claro, de viabilizar o telenegócio a favor das concorrentes privadas: distribuir pelos grandes grupos mediáticos que Balsemão (fundador e influente barão do PSD) e a TVI representam o apetecível bolo do mercado publicitário do canal público. E, a prazo, conceder-lhes, com mais um ou outro parceiro menor, o oligopólio de todo o espaço televisivo privatizado.
Se formos para a segurança social, onde se anuncia o plafonamento e a privatização futura das capitalizações dos descontos dos titulares de maiores rendimentos e até do geral dos fundos de capitalizações acumulados, o que é que se pode observar? Que este fabuloso negócio para as grandes seguradoras privadas, que significará a destruição da solidariedade intergeracional e inter-social do serviço público de segurança social, que significará a paulatina redução da segurança social pública a um serviço medíocre reservado para os mais pobres, está a ser levado a cabo por um ministro da Segurança Social, Bagão Félix, recrutado nos quadros superiores das companhias de seguros.
Não se trata aqui de uma questão de seriedade ou de honorabilidade pessoal que ninguém questiona (pelo menos até se verificarem indícios em contrário). Trata-se de uma questão política. Objectivamente, estes senhores, seguramente isentíssimos e acima de qualquer suspeita, estão a levar à prática as medidas de política que as empresas e os grupos financeiros onde eles trabalharam em postos de destaque há muito protagonizavam. É tudo, mas não é pouco.
Como no caso de saúde, onde Luís Pereira, titular da pasta, vindo dos quadros superiores do grupo Melo, anuncia uma política de concessão de exploração de hospitais a entidades privadas, ou até de privatizações, das quais, certamente por infeliz coincidência, o grupo Melo pode vir a ser, como já é, um dos principais beneficiários.
Ou o caso de Carlos Tavares, ministro da Economia, recrutado nos quadros da banca, que acaba de anunciar a nova vaga das privatizações, onde nem os serviços públicos de abastecimento de água escapam, abrindo generosamente o terreno de caça aos principais grupos económicos e financeiros.
Todos estes cavalheiros da indústria, da banca e dos negócios mais variados, de repente tornados ministros e governantes, acharão natural que a sua governação seja um prolongamento, agora com a dignidade de serviço de Estado, da gestão de interesses onde eles não vêem senão a feliz coincidência entre o privado e o público.
Com a mesma naturalidade com que os dois ministros mais responsáveis das áreas da Economia e Finanças deste Governo aceitam frequentar uma "soirée" de reflexão sobre a situação económica do país em casa de José Manuel de Melo.
Num país onde este tipo de incompatibilidades (com o que se fez antes e com o que se vai fazer depois de entrar no Governo ou em cargos de topo da Administração), não é acautelada na lei, uma tal promiscuidade, praticada no limite do escândalo público, não fará senão agravar ainda mais a suspeição da opinião pública sobre a forma como esta gente está na política. Suspeição razoável e com fundamento.
Este é um dos casos em que o que parece é. A política do Governo de direita não se limita a parecer um apêndice dos grandes interesses privados e das suas prioridades. É. É-o pelo conteúdo, pela gravidade da ofensiva contra os direitos sociais que ela traduz. Mas é-o também pela forma despudorada como a executa.
Decididamente, com o presente Governo da direita, a mulher de César perdeu até a preocupação em parecer séria. Quanto mais em sê-lo.
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