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Subject: Carta aberta ao ministro dos Assuntos Parlamentares


Author:
Vicente Jorge Silva
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Date Posted: 15/03/06 17:47:58

Caro Augusto Santos Silva,

Começo por lembrar o apreço intelectual que tenho por ti e a cumplicidade e amizade que criámos durante o breve tempo em que partilhei contigo o estatuto de deputado. Surpreendeste-me, aliás, na legislatura anterior, como o mais sagaz e combativo dos deputados socialistas. Mas exactamente por isso não ficaria bem comigo mesmo se não te exprimisse agora a minha decepção e o meu desencanto, não por estar em desacordo com algumas das tuas recentes posições - o que seria, de resto, natural e altamente saudável - mas porque não revejo nelas a pessoa que conheci e me habituei a estimar. Gostaria, sinceramente, de não me ter enganado a teu respeito, mas quando te oiço ou leio a dar laboriosas explicações sobre os excelentes e inocentíssimos propósitos da nova entidade reguladora dos media, a ERC, pergunto-me qual de nós se terá equivocado: se eu, por excesso de candura, se tu, por excesso de cinismo político.

O mais provável, vendo bem as coisas, é que nos equivocámos os dois, mas esse equívoco tem um preço amargo e com custos para a nossa amizade. É certo que nunca conseguiste esconder a atracção que o exercício do poder exercia sobre ti, a ponto de levar-te a adoptar atitudes de conveniência e manobrismo político que não traduzem o fundo daquilo em que acreditas. Mas, precisamente, nunca te mostraste convincente, credível e eficaz nesse papel, em especial quando foste ministro da Cultura do último Governo de Guterres e, nessa qualidade, te sujeitaste a ser instrumento da vocação manipuladora do teu colega José Sócrates relativamente à RTP.

Mais tarde, tiveste a oportunidade de dar a mão à palmatória, reconduzindo a administração da RTP escolhida pelo Governo de Durão Barroso e que pusera em causa opções e resultados dos quais foste um dos responsáveis. Isso só te dignificou - e permitiu, aliás, encarar as relações do poder político com os media de uma forma menos crispada, menos partidarizada e mais adulta. Pois é exactamente isso que agora volta a estar em xeque.

Falei das laboriosas explicações a que tens recorrido a propósito da ERC. Ora, o excesso de explicações é sempre suspeito, sobretudo em matérias onde deveriam prevalecer a clareza e a transparência, como são aquelas que se referem ao exercício das liberdades. Não está decerto em causa a necessidade de regulação dos media, perante a sua demonstrada incapacidade de se auto-regularem, designadamente os media audiovisuais tão permeáveis à lei da selva. Mas uma coisa é a actividade reguladora desempenhada por uma entidade acima de toda a suspeita e outra coisa bem diferente é criar uma ERC com competências dúbias e obscuras, formada num ambiente politicamente opaco e com base em critérios de escolha (não apenas do seu presidente como também dos restantes membros) que nos remetem para as piores práticas do arranjismo e clientelismo político-partidário, ainda por cima escudadas no álibi hipócrita da legitimidade parlamentar.

Se juntarmos a isto as nebulosas prescrições do Código Penal sobre o "crime de perigo" ou as cláusulas ínvias sobre o "sigilo das fontes", é lícito perguntar se o poder político não está a utilizar a reconhecida necessidade de regulação dos media como um pretexto grosseiro para a sua domesticação.

É curioso que um Governo tão refractário aos chamados "pactos de regime", mesmo em áreas onde eles seriam porventura desejáveis, tenha chegado com tanta facilidade a um "pacto de regime" secreto (embora despudorado) com o maior partido de oposição sobre a "regulação" (ou o controlo?) da comunicação social. Embora deteste invocar o meu passado de jornalista como argumento de autoridade, creio que rigorosamente ninguém me poderá acusar de complacência corporativa com a degradação dos padrões éticos e deontológicos da profissão. O que se passa, porém, é que, em vez de contribuir para combater essa deriva, o Governo de que fazes parte - e onde tens uma decisiva responsabilidade política nesta matéria - está precisamente a criar uma caixa de pandora que só favorece a promiscuidade crescente entre o poder político e os media.

Recordar-te-ás que, quando estive contigo no parlamento, tentei promover sem sucesso um amplo debate no PS sobre as relações entre o poder político e o poder mediático. A incompreensão e o cinismo acabaram por prevalecer, confortando as velhas convicções de que os "bons jornalistas" são aqueles que são politicamente dóceis para nós e agressivos para os demais. Será que tu, caro Augusto, também te rendeste definitivamente a estas socráticas evidências?

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