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MIGUEL PORTAS (DN-4-7-2002)
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Date Posted: 00:50:46 07/04/02 Thu
Miguel Portas
O mosaico dos dias
Hoje, os Estados Unidos comemoram o seu Dia da Independência.
Os serviços de inteligência, esses videntes da modernidade,
esperam notícias da Al-Qaeda. Por causa disso, as bolsas
norte-americanas recuaram para níveis de Setembro do ano
passado. Isto é o que se diz. Diverso é o que se sabe. O que se
sabe é que o Exército dos EUA confundiu pela segunda vez uma
festa de casamento com uma alcateia de terroristas no
Afeganistão. No meio da poeira não é fácil distinguir uns dos
outros, sabem? E uns e outros têm o péssimo hábito de andar aos
tiros para o ar, não é? Assim, é razoável e equilibrado que o
acontecimento se arquive no armário das "ocorrências infelizes".
Está certo. Até porque aquela gente não tem cotação em bolsa,
nem dia marcado para a independência. Nem tudo são rosas para
os EUA, neste dia da glória.
O presidente Bush gostaria de ter celebrado o dia com uma
solução "chave na mão" para a crise no Médio Oriente. Há dias,
enunciou a regra do jogo: livrem-se os palestinianos de Arafat,
que a promessa de paz regressará às desgraçadas terras da
Terra Prometida. A comunicação social começou a alvitrar
candidatos à sucessão, revelando que o preferido de Washington
seria Mohammed Dahlan. Sucede que este não esteve pelos
ajustes. Para o antigo chefe da segurança palestiniana em Gaza, o
que Bush pediu foi, "efectivamente, um golpe de Estado". Os
Estados Unidos têm sempre um modo terrivelmente simples de
resolver o que possa incomodar os seus desejos. Mas desta
enganaram-se: "Enquanto os israelitas estiverem contra Arafat eu
estarei com ele", escreveu Dahlan no The Guardian. E explicou o
óbvio: "O resultado do discurso de Bush é que nove em cada dez
palestinianos dizem que votarão em Arafat." Será corrupto, mas é
deles, não do texano. Um dia tratarão dele, mas ninguém fará isso
por eles.
Os palestinianos não têm Dia da Independência. Têm
independência. E tudo são rosas para Bush, neste Dia da
Independência. A má notícia foi compensada em Israel. Em
congresso, o Partido Trabalhista decidiu permanecer no Governo,
em aliança com a ultradireita. De nada valeu a dramática opção
colocada por Avraham Burg, presidente do Parlamento, ao
conclave: "Ou estais com o partido para a paz ou aceitais ser os
lacaios de Ariel Sharon." A maioria rendeu-se. Eis o balanço de
Daniel Bensimon, jornalista do Há'aretz: "O congresso reflecte o
declínio trágico do partido fundador do Estado de Israel, que
perdeu os seus chefes, as suas mensagens e os seus eleitores."
Em Israel há Dia da Independência. Mas, paradoxalmente, são
menos independentes do que os palestinianos que o não têm. O
Israel de Sharon é a guarda avançada de Bush no Médio Oriente.
Mudando de assunto. Algures na França, uma aldeia resiste
dificilmente ao invasor. Chama-se Partido Comunista Francês. Nas
presidenciais, o seu candidato ficou reduzido a 3 por cento e as
legislativas não melhoraram substancialmente o panorama. O
problema tem pontes de contacto com o que, por cá, se passa no
PCP. A diferença é que 15 dias depois dos desaires realizaram
uma conferência nacional. Nela, a maioria da direcção do partido
propôs a realização de um congresso. Ganhou. A minoria sugeriu
outro caminho: a realização dos Estados Gerais do comunismo,
reunindo quantos se reclamam desse ideal, estejam no PCF, fora
dele ou na Liga Comunista Revolucionária (trotsquista). A maioria
acredita ainda que o PCF se pode salvar de um inexorável destino.
Quer discutir o como e avança, em consequência, para
congresso. A minoria acha que o partido já não tem como, mas
pode ainda transportar para uma esquerda de alternativa a sua
tradição e cultura que, de outro modo, se arriscam a morrer
ingloriamente.
Pouco interessa para o caso a pertença de razão. O que interessa
é que, perante uma crise profunda, os comunistas franceses se
dispõem a discutir política.
O problema do comunismo português é o contrário: discute muito
mais comportamentos, direitos e deveres do que política. Discute o
poder, mais do que o "que fazer" com ele. E isto é válido para
renovadores e para ortodoxos. A esquerda portuguesa
encontra-se ante uma oportunidade histórica: a de construir, a
partir da oposição, a resistência e as traves de uma proposta
social, ante um Governo que se revela, além de nocivo,
extraordinariamente frágil. Para esta convergência ninguém é de
mais e as energias consumidas em combates fratricidas pouco
ajudam. O modo como se está a resolver a crise no PCP não é boa
para ninguém.
Os trabalhos de fôlego, os que podem contribuir para projectos de
alternativa, adiam-se. No Partido Comunista, a política arrisca-se a
seguir eternamente dentro de momentos. O que une a minoria é
apenas a resistência ao autoritarismo; e o que liga Carvalhas e
ortodoxos à maioria da base do partido é a limpeza da casa, essa
tragédia sem fim, vaga atrás de vaga. Eis o paradoxo desta
escolha: quanto menos influente o partido se revela na sociedade,
mais se sente o centro do mundo.
E porque todos conhecem este filme, me interrogo: porque não é
possível a forma do divórcio amigável, provada que está a
inviabilidade da convivência em quartos separados? Por que tem
que ser sempre assim, à antiga, ao empurrão, com gritos, sangue
e lágrimas?
Esta vertigem só revela os piores da condição humana. E oculta,
tantas vezes para sempre, o melhor da tradição comunista - uma
imensa generosidade. Cada um saberá de si, é claro. Não há é
Deus para tratar de todos.
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