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Miguel Sousa Tavares
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Date Posted: 12/10/05 10:01:40
Anos e anos perdidos
Miguel Sousa Tavares
Já perdi a conta aos anos que levo de escrita no PÚBLICO, mas tenho a noção de que por eles passaram mais de uma dezena de eleições nacionais - autárquicas, europeias, legislativas, presidenciais. E em nenhuma delas usei este espaço para dar indicações de voto, explícitas ou implícitas. Mais uma vez o vou evitar nestas autárquicas, embora quem me segue habitualmente possa adivinhar, pelo menos, em quem é que eu não voto em Lisboa e em quem não votaria, se aí estivesse recenseado, no Porto, Gondomar, Amarante, Felgueiras, Oeiras ou no Algarve (aqui é fácil: em ninguém, em lado algum).
Este exercício de autocontenção obriga-me, nas sextas-feiras de antevéspera eleitoral, a lançar mão de assuntos que nada tenham que ver com o depois de amanhã. Ontem, arrumando papéis e livros, deparei-me com um texto que escrevi, faz agora exactamente quatro anos, e que serviu de introdução ao livro chamado Anos Perdidos, onde reuni uma escolha das crónicas publicadas aqui entre 1995 e 2001 - os anos socialistas de António Guterres. O governo de Guterres estava então no seu estertor final, que ocorreria logo a seguir e na noite das últimas autárquicas. Sucedeu-lhe Durão Barroso, que governaria dois anos e fugiria, e Santana Lopes, que governou nove desastrados meses e foi sumariamente despedido pelo Presidente. E, desde Março, Sócrates e os socialistas de regresso ao poder. O que me chamou a atenção, ao reler um texto que já não via desde então, foi a constatação de que aos anos perdidos entre 96 e 2001 vieram somar-se depois mais quatro anos desperdiçados, e que o retrato sombrio que eu então fazia do país apenas se acentuou, nada de essencial tendo mudado, desde então. Eis parte do que escrevi em Outubro de 2001:
"Em 1 de Outubro de 1995, António Guterres tornava-se primeiro-ministro de Portugal, sem maioria absoluta, mas em condições de governabilidade mais do que razoáveis. Uma nova geração de socialistas, despida dos preconceitos ideológicos do passado e de dívidas clientelares que uma década de oposição tinham feito prescrever, chegava ao poder, de mãos limpas e cara lavada, perante um país que suspirava por uma corrente de ar fresco. Para trás ficavam esses dez anos de jactância cavaquista, que produzira auto-estradas e fortunas rápidas, mas nenhuma das reformas essenciais de que o país precisava para aceder à modernidade. Ao rápido crescimento dos indicadores económicos do país não se sucedera nenhuma mudança qualitativa, naquilo que caracteriza um país moderno e civilizado: havia uma saúde para ricos e outra para pobres, um sistema fiscal para ricos e outro para pobres, um país desequilibrado entre um litoral cheio de oportunidades, negócios e empregos, e um interior morto ou moribundo - política, económica e culturalmente. Em tudo o que o Estado intervinha, as coisas funcionavam pior e eram mais caras: na saúde mandavam os médicos, no ensino mandava o Sindicato dos Professores, na justiça mandavam os juízes e os magistrados do Ministério Público, no fisco mandavam os diversos lobbies organizados - a banca, a construção civil, os advogados (...)
"O que se esperava de um governo de António Guterres era um mínimo de sentimento social, um mínimo de moralização das funções do Estado, um mínimo de coragem para enfrentar o pântano das vontades adormecidas e dos interesses estabelecidos. Tinha tudo a seu favor para tal: os dinheiros europeus e das privatizações, as taxas de juro baixas, a paz social e política, a cooperação do Presidente, a vontade da nação, expressa nas urnas. Depois, teve ainda a sua visibilidade e prestígio externos, a festa da Expo-98, a euforia bolsista.
"E o que fez ele com tudo isso? Seis anos depois, a resposta, a penosa resposta, é: nada. Preferiu a "solidariedade" (isto é, a caridade cristã) à justiça social. Não ousou enfrentar um único lobby, um único interesse estabelecido, uma única corporação profissional. Demitindo-se, deu a gestão dos hospitais aos médicos, deu a gestão do ensino aos professores, aos alunos e à JS, deu a gestão da justiça aos magistrados, os quais aproveitaram para a desprestigiar até um ponto inimaginável, cumulou de benesses fiscais os lucros da banca e, tendo dado a esmola do Rendimento Mínimo Garantido aos pobres, achou-se legitimado para financiar com dez vezes mais dinheiros públicos negócios privados. Tendo anunciado de início que não haveria "jobs for the boys", nomeou em seis anos mais boys para jobs públicos do que o PSD havia feito em dez anos, perante a sua própria indignação. E assistiu, indiferente, à notável incompetência dos seus boys, acumulando prejuízos astronómicos em empresas públicas essenciais ao funcionamento do país (...)
"A partir daí, e excepção feita ao raro momento em que se impôs como estadista, no desenlace da questão de Timor, Guterres e os seus governos mergulharam numa espécie de letargia depressiva. É como se tivessem decidido, de uma vez por todas, que nada havia a fazer por Portugal e que é aliás provável que os portugueses, no fundo, desejem que nada seja feito. Sentaram-se, pois, sobre a cadeira inútil do poder, ficando a ver o tempo passar... até à próxima eleição (...). Abandonada qualquer vontade reformista, qualquer veleidade de luta ou de mudança, qualquer exigência moral no uso do poder, qualquer esperança, qualquer horizonte. Ao serem reeleitos para mais quatro anos, tinham apenas duas coisas concretas para nos propor: acabar com as filas de espera para intervenções cirúrgicas nos hospitais públicos até 2003 e dar à sua clientela da construção civil o maná de dinheiros públicos que vai ser o Euro de futebol de 2004. Tudo o resto jaz sepultado, sem glória alguma, na fatalidade da real politik (...).
"Como tantas vezes sucede quando olhamos para trás, o que me apetecia era poder rebobinar o filme e contar a história de outra maneira, não como ela aconteceu, mas como poderia ter acontecido. Regressar a esse distante 1 de Outubro de 1995, em que tudo parecia poder começar de novo. Mas, o que está feito, está feito: os anos perdidos são irrecuperáveis."
Sobre esta crónica de seis anos perdidos, escrita em 2001, passaram já mais quatro anos: ao todo, uma década inteira de nenhuma mudança. Em certas coisas, o Governo de Sócrates tem-se limitado a repetir as tropelias habituais, como na colocação dos boys ou nos projectos de empreitadas públicas para satisfação clientelar. Noutras, é justo reconhecer que tem tentado mexer nas águas estagnadas dos interesses instalados. Mas, dos militares aos juízes, dos autarcas aos professores, todas as corporações do país estão em pé de guerra pelos "direitos adquiridos". Quem viu o debate da RTP1 sobre a justiça e assistiu à prestação dos representantes sindicais dos juízes e dos magistrados do Ministério Público percebeu até que ponto desceu a noção de serviço público e a força tremenda que será necessária para levar as reformas avante. No outro dia, ouvi um represente sindical dos professores anunciar a sua última razão de contestação: querem que as "aulas de substituição" sejam pagas como trabalho extraordinário. Julgo ter percebido bem: um professor falta e o colega chamado em sua substituição - que está na escola, dentro do seu horário de trabalho, mas sem nada que fazer naquela hora - só aceita substituí-lo se for pago a dobrar. Conhecem alguma empresa privada, no mundo inteiro, onde um trabalhador ouse colocar isto como "direito adquirido"?
Sócrates tem fatalmente de escolher entre romper a direito ou desistir como Guterres ou fugir como Barroso. E o próximo Presidente da República terá fatalmente de meditar nas lições da década de Jorge Sampaio. Mais dez anwos assim e só nos resta o "salve-se quem puder".
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